Sobras

(Para FR -- obrigada, ou desculpe, pela inspiração)

Vicente era um menino sozinho.

Pensava nisso enquanto atirava as grandes sacolas pretas de sobras à bocarra do moedor de lixo nas docas fedorentas. Pensava sem autopiedade, simplesmente constatando o fato de que era só.

Deu boa noite ao homem que empurrava todo o lixo que ele e os outros vendedores jogavam na caçamba com um rastelo imundo em direção aos dentes da máquina. Aquilo sim era um trabalho sujo, pensou. O lixeiro retribuiu o cumprimento e desejou-lhe um feliz Natal com um sorriso enorme e banguela.

Desviou das poças de chorume e saltou para a rampa até voltar à galeria. As lojas estavam sendo fechadas e as luzes apagadas, e alguém interrompeu uma música natalina de Sinatra nos autofalantes. Uns poucos vendedores de rosto familiar zanzavam pelo corredor de cara exausta. Não fora um feriado bom para as vendas.

Vicente arrastou as botas até deixar o edifício pela porta da frente e acendeu um cigarro tão logo saiu ao ar livre. O segurança censurou-o com os olhos duros e miúdos de touro. Ele parecia ser ainda um garoto novo de bochechas peladas coradas, mas já era um homem para a lei.

Mesmo anos antes ele já se tornara um adulto de modos sérios, quase melancólicos.

Levantou o rosto para o céu. Um poste derramou luz alaranjada sobre ele e Vicente tinha consciência de que seus olhos pareciam dourados e angelicais.

Encontrou a esfera crescente no céu e sentiu o corpo de menino delicado queimar com paixão infantil pela lua, por Lua, a garota que trabalhava com ele na loja. Sabia que suas mãos já pesadas de desejo a assustavam e isso lhe dava certo prazer, como o desprezo dela o excitava. A menina de nome lunar queria um Homem, um animal, um São Jorge matador de dragões, e não um moleque de olhar puro como o de uma mocinha.

Vicente apagava perto dela como as estrelas distantes somem nas noites de lua L-u-a cheia e brilhante, como as mães de coração partido somem ao chorar os erros dos pais de seus filhos e estes são entregues à própria sorte em noites vazias e quentes demais como aquela.

Os erros dos pais! Ele o odiava por tê-los humilhado tanto e a odiava por ter se entregado à humilhação, fugindo com os filhos para longe de tudo que conheciam e amavam e que agora, segundo ela, ria deles como os demônios riem dos mortais.

E ela o odiava, seu primogênito, por ser uma pequena cópia do homem que amara e estava condenada a amar no seu ódio. Vicente tinha pesadelos e medo do escuro e pulava da cama ensopada de suor frio, e rastejava até o quarto onde a mulher dormia com seu irmão pequeno, observando os dois ressonarem da porta, calculando, respiração presa, punhos abrindo e fechando na expectativa, barriga gelada.

Quando o caçula se mexia, Vicente aproveitava para deslizar descalço até a cama e depositar seu corpo trêmulo de adrenalina e pecado adulto no colchão ao lado da mulher de sua vida. Eram segundos de êxtase até que a mãe acordasse e o enxotasse do quarto, a maçã podre, o renegado.

Todas as noites o pequeno Vicente bolava um plano infalível para conquistar seu lugar na cama da mãe. Todas as noites seu plano falhava.

Terminando o cigarro, ele lançou mais um olhar à enorme galeria fechada e apagada. Percebeu como era esquisito que durante o dia o lugar fosse um formigueiro e tantas vidas dependessem dos acontecimentos naquela estrutura, a essa hora morta e sombria.

O que sobrava depois que a galeria fechava, que a cidade dormia, que o Natal passava?

Mais um dia, mais um ano, mais horas no trânsito, mais pessoas atrasadas acotovelando-se como um rebanho no abatedouro para entrar no ônibus, gritando umas com as outras, desprezando-se, alarmando-se, perdendo-se.

Vicente sentia a raiva e o medo crescendo dentro do peito como um lobisomem ouve o chamado da Lua. Era sua hora de inventar uma guerra para ser soldado.

Uma hora mais tarde chegou em casa, exausto. O clímax passara e só havia vazio. As sobras da janta estavam sobre a mesa, mas aquilo ficaria para depois; o menino caminhou com pés leves até o quarto da sua única família, sua mulher, sua irmã, sabendo que ela já estaria ciente de sua chegada com seus ouvidos de morcego.

Encontrou-a deitada como um gato tranquilo sobre a cama. Sorria preguiçosamente e seus olhos eram de vidro.

A sociedade criara Vicente, e por ele seria destruída.

Valentina Caligari
Enviado por Valentina Caligari em 26/12/2013
Reeditado em 12/03/2014
Código do texto: T4626210
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