Imagem e semelhança
- Quer uma guloseima, fia?
Mallu e seu avô haviam parado numa lanchonete na beira da BR 277 saindo de Curitiba. Ele a havia levado no seu Corolla do ano para uma consulta com o psiquiatra na capital, e sempre frequentava aquele lugar. Seu avô era um sujeito grande, bronco porém de aparência bem-cuidada, como um leão domesticado: sobrancelhas muito grossas, barba bem feita, o colarinho aberto mostrando um tufo de pelos brancos no começo do peito, os óculos antiquados no bolso da camisa, o cheiro familiar de gente velha e austeridade.
E sobretudo a calma.
- Vou querer um X-salada sem queijo e uma Coca.
- Coca? Eu tomo suco de amora aqui. É do bão. Prova.
Mallu não sabia se gostava de suco de amora e preferia não arriscar, mas o avô falara com tanta simplicidade que ela aceitou, e depois de observar as longas tiras de sachês de mel e as linguiças penduradas e os vinhos artesanais nas prateleiras enquanto o velho fazia o pedido a uma polaca no balcão os dois sentaram-se em silêncio numa das mesinhas, com o radialista chiando piadas sem graça ao fundo.
Não falaram – um tamborilava os dedos fortes no tampo da mesa, a outra tremelicava a perna como os adolescentes fazem, ambos olhando pela janela. Mas havia cumplicidade e aceitação mútua no ar. Eram dois mundos tão diferentes, e jamais se chocavam, pois o sangue os unia.
E nada vinha acima da famiglia, tanto para o velho conservador quanto para a menina liberal que acabara de terminar seu primeiro namoro com uma mulher.
Ele não sabia do namoro, é claro. Mas aceitava as tatuagens, a banda de rock, os amigos cabeludos e o gosto por álcool da neta menor de idade, mesmo que com alguma dificuldade.
Porque Mallu o amava e tentava teimosamente fazer parte de seu mundo antigo, sábio, sereno.
Era um sujeito caladão, filho de imigrantes italianos sem um tostão que plantavam seu sustento. Décimo primeiro de doze filhotes. Mesmo com pouca escolaridade, tinha uma cabeça fotográfica e passara no concurso para o Banco com a idade de Mallu ou menos e daí tornara-se um burguês genuíno, novo rico, especulador de imóveis – sem perder o sotaque caipiritaliano, o jeitão rude e os gostos baratos.
Atribuindo seu crescimento em plena Ditadura a hábitos e valores azuis, criara suas filhas com rigidez, moral, religiosidade, culto a imagem boa e sóbria e amor ao trabalho. Havia dúvidas quanto ao seu sucesso com relação ao último quesito, mas os outros ideais foram passados e repassados adiante como uma cartilha.
Quer dizer, até topar com Mallu e seu “segredo”, que aos poucos deixava de sê-lo.
Os dois se detestariam se a vida se resumisse a valores, mas ela era a neta mais próxima do velho Caporetto. Mais próxima a ele e mais semelhante a ele.
Mallu herdara o jeito lento, bonachão e pensativo, o sofrer em silêncio e comemorar com os entes queridos, o cavalheirismo e nunca pedir retorno ao ajudar quem amava. Ser assim passiva incomodava algumas pessoas às vezes – como sua ex-namorada, e como sua avó se irritava com o marido. Mas Mallu não ligava. Tinha muito orgulho de ser como o avô e sabia que ele também se orgulhava dela.
Embora fosse da natureza dos dois só demonstrar carinho explícito depois de umas cervejas.
Uma outra mocinha polaca trouxe o lanche à mesa, dois sanduíches e dois copos de suco. Quando o velho estendeu a enorme pata para a bebida, fez o copo tombar numa atitude muito comum a Mallu. O suco vermelhorroxo deitou na mesa e sobre o colo dela.
Seu avô, sem demonstrar o mínimo de pressa, tirou uns guardanapos do suporte e depositou-os com todo cuidado sobre a poça. A menina do balcão foi pegar um pano.
Se qualquer outra pessoa derrubasse suco vermelhorroxo grosso de amora sobre ela, Mallu provavelmente teria saído da mesa sem falar nada depois de vários segundos concentrando todo seu desprezo sobre o otário para se fechar no banheiro orgulhosamente.
Mas ela entendia o avô. Ela entendia que sua mão era enorme – ela mesma tinha mãos grandes demais para uma menina, sem conseguir se adaptar a elas, e a julgar pelo avô jamais se adaptaria. Entendia que, vendo a lambança, ele pensara que a bosta já estava feita e gestos bruscos não serviriam para nada. Entendia a lentidão para colocar os guardanapos como sendo de uma pessoa simples e honesta.
Mallu o entendia, porque era exatamente como ele.
Então ela sorriu, calma, lenta, caipira e velha como seu avô, imagem e semelhança, tomou um gole do próprio suco vermelhorroxo de amora e com sua mão grande demais ofereceu-o para ele, ele que tivera a vida que ela queria ter, carpindo, semeando, colhendo, lutando, e disse:
- Esse é um suco do bão, hein?