Cininha quis mudar de vida
Cininha quis mudar de vida.
Assim, de repente.
Aposentadoria batendo na porta, 55 anos na identidade, filhos criados, contas pagas... Estava mais do que na hora de inventar alguma coisa.
A ideia veio do nada, de um dia andando no shopping de sacola de palha a tiracolo, sapato preto de borracha e raízes brancas aparecendo.
O espelho da loja não ajudou na hora de entrar no vestido. Nem o vestiário minúsculo que fazia o suor escorrer pela papada.
Tinha que mudar!
Urgentemente!
Em casa, comentou a decisão.
Geraldo, ouviu a maluquice e voltou para o controle da TV.
Cininha espumou de raiva.
Que tanto de descaso era aquele que ela merecia?
Azeda e mais uma vez se perguntando porque aturava aquilo, chamou o molenga para mudar com ela.
Mudar? Para quê? Perguntou o moleirão - Só se fosse o canal da televisão!
Então mudaria sozinha, que não tinha nascido colada naquele monte! – disse, munida de mais vontade.
No dia seguinte, parou no primeiro anúncio de academia.
Não queria nada que qualquer amiga fizesse. Queria uma coisa nova, moderna, até radical.
De cara se encantou com um tal de “boxe tailandês”. Não tinha ideia do que era aquilo, mas prometia milagre e milagre era tudo o que ela precisava.
O marido, quando viu as luvas de luta, a encarou como quem olhava uma louca e disse com raiva que ela estava velha demais para uma besteira daquelas.
Se quisesse se “sentir útil”, que fosse cuidar dos netos ou da casa que andava meio largada.
Cininha baqueou.
Ficou parada atrás do sofá remoendo as palavras e vendo a bola preta e branca correr pelo gramado pela milésima vez.
Que já não era jovem, sabia. Que estava cansada, também.
O que ainda não sabia era a pouca importância que tinha.
Não que houvesse esperança para o casamento, ou, ainda, que Geraldo se tornasse o parceiro que ela esperava, mas daí a ser tratada como empregada, havia um abismo.
O quarto escuro a recebeu compreensivamente.
O espelho de corpo inteiro, nem tanto. “Ele tem razão”, a imagem refletida dizia. Mas só tenho 55. Só 55! - Gritava a mente.
A luta foi breve mas intensa.
De um lado o espelho cruel a açoitá-la com a voz arrastada e crítica do marido, do outro, a memória de quem pensava era.
Ganhou quem tinha mais força.
Dois dias depois, lá estava ela de luvas em punho e pernas bambas com quinze minutos de aula.
Saiu morta, quebrada, exaurida.
À noite não conseguia dormir de dor e de excitação, mas estava viva. Viva!
Se podia com aquilo, poderia fazer mais e queria. Como queria!
Uma semana após chutes e murros, mudou o cabelo, comprou uma saia colorida e chamou o marido para o cinema. Ele recusou, estava cansado. Queria ir cedo para cama.
Cansado de quê? Ela quis saber. Logo ele que não saía do sofá nem para buscar a cerveja?
Geraldo, nem respondeu. Resmungou alguma coisa e voltou para o futebol.
Resignada, Cininha jogou fora os planos e o perfume que reservara para noite.
Quinze dias depois o corpo já não reclamava tanto e ela foi caminhar no parque.
Queria ver gente saudável, novas cores, outros ares.
Viu gente nova de ideias e velhas de rosto. Viu também tanta gente nova de corpo e morta na mente.
Estava no primeiro grupo e se pegou satisfeita.
O neto, Tavinho, que ia no mesmo parque, parou para abraçá-la um pouco constrangido. Vovó nunca havia andado com aquelas roupas, muito menos com aquele sorriso.
Ela contou das aulas de luta, ele riu e a desafiou para o skate. Cininha topou na hora. Porque quem luta Muay Thai não vai fugir de umas rodinhas!
O marido bufou desta vez. Papel de ridículo não iria fazer! Avó tentando ser neta não combinava com nada, muito menos com aquela família!
Cininha nem ligou. Comprou cotoveleiras e capacete. Marcou com Tavinho na tarde de quinta.
Ela morreu de vergonha quando chegou chamando a atenção de todos no parque.
“Coisa feia, mulher nesta idade se metendo a besta”, ouviu de uma coruja que se escondia por detrás de um marido barrigudo e cheio de soberba.
Não deu a mínima, não estava nem aí. Tavinho deu as deixas e ela foi ela tentar se equilibrar na prancha.
A cada tombo, levantava e gargalhava. Duas horas depois, ainda não tinha conseguido parar em cima do tal de skate.
Mas, Cininha... Ah, Dona Cininha, ria feito menina em dia de festa.
A graça - repetia ela - não estava em não conseguir mas sim, na coragem de tentar.
E então, descobriu que podia tudo. E que nunca mais se contentaria com menos.
E assim seguiu a vida. Três vezes por semana Muay Thai, finais de semana, aulas de skate com a molecada.
A TV local se interessou pela história dela que deu entrevista toda animada.
Geraldo não viu, tinha decisão do campeonato no mesmo dia.
Ele por fim, em um arremedo de indignação, quis o divórcio, ela concordou.
Pisando alto, ele foi para o quarto para esquecer o assunto. Não falava a sério, por certo, queria apenas saber até onde ela iria bancar aquela falta de vergonha.
Cininha, ponderou. Eram muitos anos de investimento.
No sábado quis fazer as pazes e o chamou para dançar. Quem sabe uma noite juntos acertasse tudo.
Ele aceitou as palavras de carinho, mas dançar? Aí já era demais! No máximo um filme e dormir cedo.
Ela concordou.
No escuro da noite, olhou para trás e reviu seus valores.
Geraldo roncava alto e dormia alheio à tempestade que rugia na cabeça dela.
Cininha por fim se acalmou e dormiu.
Sonhou que era jovem novamente e que se casava com Armando. Estava feliz e ele, forte, alegre e cheio de energia, a ouvia e a incentivava em qualquer coisa que quisesse ou fizesse.
Acordou com o despertador avisando que era hora do café de Geraldo e antes de colar a boca em um beijo com Armando.
Uma tristeza. Um sonho tão bom, terminado assim...
O cheiro do café invadiu a cozinha.
Geraldo e a barriga chegaram logo depois.
Cininha, por fim aceitou.
Naquele dia, não foi a academia. Comprou um vestido estampado, e saiu dirigindo com a música que mais gostava.
O facebook dizia, ela acreditava.
Armando estava separado e ainda era um homem de encher os olhos.
Arrumou o cabelo e retocou o batom.
Iria confirmar e se ele ainda sorrisse para ela...
Bem... aí sim...seria uma outra história.