Garota de Copacabana
Eu tinha esse costume de viver de trabalho, não conseguia sair daquela rotina estafante e chegava a desobedecer feriados triviais, eu era jovem, não precisava, aliás, não preciso, continuo a trabalhar intensamente com o objetivo claro de alçar voos maiores, quem sabe um dia descansar de vez, por enquanto fico paulatinamente trabalhando, cansando a carne, distraindo o espírito.
Meu trabalho não era dos mais fáceis, até porque jornalista vive a penar, seja atrás de estádios lotados para entrevistar jogadores suados ou pecando ao ponto de desejar um assassinato qualquer, podia ser até de um ex-BBB, achar raridades daqueles que ainda viviam no Rio ou que não estavam na ponte aérea Rio-São Paulo.
Tenho uma vida que não posso reclamar, uma mulher, dois filhos, todos com saúde suficiente para ficarem doentes e me fazerem comprar remédios e dar uma de enfermeira 24 horas, nem que seja por 2 horinhas em que estou em casa. Ouço reclamações de minha mulher como qualquer marido: “Faz tempo que não recebo uma florzinha” ou “Onde está meu beijo de boa noite?” eu com meu lado poético ouvia com o desdém de um mercador as lamúrias e no outro dia levava café na cama, e ao lado do seu café com leite desnatado vinha de brinde um poema qualquer que mesmo tendo sentimento rimava alhos e bugalhos. O exito era certo, ela se derretia e eu me garantia até que outro marido trazia mimos do trabalho e minha mulher ficava sabendo, as mulheres vem com esse problema de auto confiança, percebo pois esse mês já tive que jurar meu amor por Clarice dezenas de vezes.
Minha casa é muito agradável, tenho por ela muito carinho, mas felizmente não passo muito tempo nela, estou sempre a trabalhar e trabalhar(chego a ser caçoado pelos meus filhos que me chamam de “Formigão”, aquele que só trabalha), tenho a certeza de que meus filhos tem o maior conforto em seu quarto, com televisões modernas e estilos próprios, e para balancear tudo isso ainda fui inventar de passear no shopping quando fui abatido por uma criatura diminuta que com seus olhos pedintes me fizeram pagar para levar, um lindo Pug que com sua cara amassada me lembrava tristeza, mas suas atitudes me faziam enxergar um espírito brincalhão, bobão, me senti em casa com meu novo companheiro.
Quando se cria um cão há de se ter em mente as responsabilidades que vinham com ele, e uma dessas primeiras é dar o nome ao bichano, ouvi sugestões como Toddy, Toby, Pretinho, nada que soasse menos clichê, então pedi inspiração divina e decidi chamá-lo de Coragem, baseado no meu desenho infantil favorito, e até que caiu bem num cachorro que tinha medo de gatos...
Outra responsabilidade era a hora das “necessidades” de Coragem, nos primeiros dias era só alegria, todos se ofereciam e o cachorro urinava 3 ou 4 vezes por dia, muito mal-acostumado. Passado o tempo como tudo na vida, as coisas caem, a poeira baixa e sobra para aquele que melhor compreende a situação, nesse caso eu, que paguei por ele e que vejo eu mesmo naquele corpo diminuto, saía com Coragem dias e noites quando chegava do trabalho, enfrentávamos chuva e sol, sol escaldante da Avenida Copacabana, Coragem não podia reclamar, urinava onde poucas pessoas pisaram.
Foi num passeio desses, um dia qualquer de uma terça-feira qualquer, em que estávamos eu e Coragem a andar pela avenida, agora em horário diferente afinal era feriado, Dia do Trabalho, eu infelizmente não pude labutar e um de meus escapes era sair com meu cachorro. Então lá estávamos nós a passear lentamente pela orla, tudo de praxe, Coragem cheirava alguns atletas que se esforçavam, eu admirava a coragem daqueles que estavam no mar com tantas algas na beirada, e tudo estava muito normal.
Eu, barroco que sou, rezava sempre a Deus pedindo uma oscilação na vida, uma aventura, que fosse uma ressaca para não se lembrar, Clarice ficaria com raiva, mas paciência, eu queria me sentir vivo de novo, desviar da rotina estafante e rotineira demais, e tinha de acontecer logo hoje, numa terça feira, 1 de maio, feriado, em pleno meio-dia eu estava na rua, sem nada pra fazer, a sorte do sistema digestório de meu cachorro.
Foi nesse dia incomum que, com o olhar perdido nas marolas que se quebravam pude ver se aproximar um barco, de longe parecia uma embarcação simples, feita dessas madeiras que dão problema com o Governo, eu percebia que na proa estava uma só pessoa, seria um homem, pai de família que foi buscar o almoço? Ou um empresário de sucesso que como eu sem ter nada pra fazer, foi pescar?
Eu imaginei de tudo, fiz minhas conjecturas sobre a situação nada inusitada em pleno feriado em Copacabana. Parei um pouco e fiquei a admirar a trajetória do barco que se aproximava e algo me fazia continuar ali de pé, sem sentir os ventos que embaraçavam meus cabelos grisalhos, e muito menos dar atenção aos gritos de “Picolé, caldinho, queijo”.
Só estávamos ali eu, o barco, e seu passageiro, quanto mais se aproximava ficava mais fácil para eu dar silhueta aquele corpo, e percebi que estive errado, era uma mulher, mais ou menos da idade de minha filha mais velha, seus 20 e poucos anos, senti uma súbita chama em meu peito, algo que nunca sentira antes, era esse mesmo sentimento que me prendia a aquela posição de admiração, entrega e coragem.
Estávamos separados por algumas milhas náuticas, seus olhos fitavam a terra firme, pensei que em um momento fossemos Dante e sua Beatriz, ou quem sabe Vinícius admirando sua Helo Pinheiro separados por um fio d'água que não cessava a oscilar. A minha admiração teve fim quando o barco já atracava, ouvi rosnados e latidos muito peculiares e não me aguentei:
-Coragem! Pare com isso, volte aqui!
Perdi-a de vista, fui um pouco de louco, arrastei o cachorro praia a dentro, não sabia o que gritar por seu nome, não tínhamos o menor afeto, nossa relação era tão ínfima que tive que desistir, mas foi tão forte enquanto durou, só de pensar que te perdi para o Coragem. Imagino se tudo tivesse sido diferente, se a ausência do Coragem me faria ir lá e te cumprimentar, não sei... Talvez faltasse o Coragem e a coragem, eu não conseguiria segurar esse sentimento, minha fúria ao perdê-la foi tão grande que fiquei doente, ao ponto de não ir trabalhar para o espanto de todos em casa. Ah, minha querida, pedi por oscilações na vida, e nas oscilações da natureza te perdi, nosso momento tão nosso, tão meu, tão salgado, tão marinho, tão cariocamente vagabundo que aconteceu num 1º de Maio. Voltei a trabalhar e rezar...
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