Estigmas, Preconceitos e Ideais: Feridas na Alma
Manhã de domingo.
Da cozinha, ele prepara a vitamina de mamão para o seu filho Ismael, de 7 anos, que está na sala assistindo desenho animado.
Ela está dormindo, como disse ontem aos gritos o que iria fazer esta manhã, enquanto discutiam se teriam ou não uma empregada como os vizinhos do lado tinham. César dizia que eles não precisavam pois só tinham Kevin como filho e que ele não dava muito trabalho. Ela dizia que todas as vizinhas do bairro tinham empregadas, só ela que não e que não iria acordar cedo para fazer o café da manhã. Ele que se quisesse tomar café, que acordasse e fizesse.
César quer comprar o carro do ano e precisa economizar para isto. O seu vizinho está com uma Hilux do ano na garagem e ele se sente menor, inferior e vê que só comprando um melhor poderá se sentir melhor, como num comercial de família de margarina.
César e Cláudia não transam há muito tempo. Brigam todos os dias e quando acham que não estão brigando estão relembrando ou ressentindo mágoas passadas para manter a barreira invisível, este muro que eles mesmos construíram pra si na tentativa de mostrar que algo está errado neste casamento e com certeza a culpa não é dela e para ele, não é dele.
Ele acorda meio apressado, olhando o relógio e passando a mão direita na testa e depois entre os cabelos. Jean acorda. “Está indo para onde, a essa hora?” perguntou. “Você já sabe. Eu tenho uma outra vida lá fora. Não posso ser como você. Livre. Tenho uma namorada e tenho que casar e ter filhos como todo mundo senão meu pai me mata e me expulsa da empresa dele. “Até quando você vai viver duas vidas Jean? Será que o prazer da sua vida é se esconder e me manter refém de seu medo, de sua covardia? Não posso me dar à este sofrimento, é demais humilhante pra mim.” Disse Anderson. “Eu não sei porque você insiste tanto em assumir nosso relacionamento. Você é meu amigo de infância. Sempre freqüentou a minha casa, conhece minha família e eles te respeitam. Ficaram até do seu lado quando você se assumiu para a sua família. A gente pode continuar como estamos. Estamos bem assim não estamos?” Perguntou Jean. “Não, não estamos. Sem querer ser ingrato, mas sua família me respeita porque eles não sabem do nosso relacionamento. Porque se souberem, tenho certeza que eles não ficarão ao meu lado novamente e você sabe disso. E é disso que você sempre foge: da realidade. Assumir a sua condição nesta realidade é algo insuportável para você que não quer perder seu cargo de chefia na empresa de seu pai, pois sabe que se fizer isto, ele te expulsará da empresa e até de casa. E eu te entendo perfeitamente, entendo mesmo. Mas não posso continuar me anulando como estou e como estamos. Não é justo comigo e nem com você. É uma opção de vida infeliz, cheio de máscaras e disfarces, personagens. Para mim não dá, é muito doloroso isto. E já está ficando cada vez mais insuportável.” Lamentou Anderson.
Jean olha novamente para o relógio e vê que está atrasado para o almoço com a família de Camila, sua namorada e futura noiva. E respira fundo, como quem está perdido. E se despede de Anderson dando-lhe um beijo em seus lábios. “Eu volto mais tarde amor. Prometo ta!” Disse ele ao acariciá-lo na testa passando as suas mãos nos cabelos lisos e pretos de Anderson.
Segunda. 7 horas da manhã.
Katie chega atrasada como na maioria das segundas-feiras, que é quando o seu padrasto bebe muito e sempre a agride com socos e pontapés. Ela dá seus passos lentos até o pátio da escola. Ela é linda, perfeita como dizem os meninos. É desejada por todos ou quase todos, a não ser por aqueles que desdenham. Mas ela não se importa. Na verdade não se importa com nada disso. Queria ser feia, para que quando chegasse à escola, ninguém a notasse. Ninguém notasse as possíveis marcas em suas costas, braços e pernas. Se fosse feia, ninguém a olharia e nem sentiria sua falta. Mas além de bonita é simpática, tenta ser educada com todos. Não quer grossa igual à mãe nem insuportável e nojento como o seu padrasto. É ótima aluna. Só tira notas boas, participa do coral da escola e ainda arranja tempo para se dedicar ao teatro do bairro. Quanto mais se ocupa fora de casa, melhor.
Segunda. 10 horas da manhã. Na mesma escola.
Ellie é uma garota adolescente como Katie, a garota mais bonita da escola. Mas não é vista, nem admirada e nem desejada. Está acima do peso e isso é motivo de piadas e chacotas. Esses dias ao pegar a prova com a professora, viu que a mesma tinha colocado uma observação no canto direito da prova. Leu “Ellie, você pode ser mais bonita. Faça um regime. Os meninos vão gostar de você, tenho certeza. Percebo sua tristeza em ser gordinha e não quero continuar te vendo assim ta? Um beijo de sua professora de Português, Graça.”
“Qual é o problema dela? Qual é o problema de todo mundo? Eu não posso estar acima do peso e bem comigo mesmo? Eu tenho que ser magra para ser desejada e admirada? “ Pensou consigo mesma. Sentiu uma dor, uma tristeza e uma raiva quase beirando ao ódio à todo mundo. Às vezes sentia vontade de fugir dali para qualquer lugar onde pudesse ficar em paz ou sem a presença de alguém, o que daria em paz. Não consegue entender a razão pela qual as pessoas tem que estar nos padrões de beleza para se sentirem bem. Ela está bem consigo mesma. “Que merda de sociedade...” Pensava ela ao chorar num canto da escola em que ficava quando queria ficar sozinha refletindo.
Sexta. 4 horas da manhã e 40 minutos.
Marilena já está acordada, preparando o lanche do filho para levar para a creche. Na Rocinha é assim. Tudo tem que ser feito e preparado horas antes se quiser contar com a sorte. Pois até chegar na cidade para trabalhar, todo o pré-trabalho que tinha que realizar antes de chegar lá as 8 horas da manhã já era cansativo. Ainda mais na sextas, quando já se sentia esgotada psicologicamente. Sua alma cansada e estigmatizada pela cor da pele não lhe poupava o cansaço, a dor de ser negra numa sociedade onde os brancos mandam e negros são bandidos, vigilantes, seguranças de shopping center’s ou lavadores de carros em lava-jatos de postos de gasolinas. E se tudo der errado a culpa sempre será deles, incompetentes e corrompíveis, sempre andando de mãos dadas com a bandidagem. “Malandro mesmo são os brancos que fomentam toda essa guerra, todo esse ódio.” Pensava ela às vezes quando saía de casa às 6 horas da manhã descendo toda aquela escadaria enorme que dava para as casinhas frágeis na favela da Rocinha.
Numa certa noite na cidade maravilhosa, ouve-se um tiroteio na rua mais movimentada no bairro Brás de Pina. Katie que está saindo das aulas de teatro sai correndo desesperada, com a alma aflita achando que vai morrer esta hora. Anderson e Jean estão no bar com os amigos, “posando” de amigos héteros quando ouvem os disparos e logo saem correndo em direção a casa de Anderson que fica bem próximo do bar. César e Claudia estão passando de carro quando ouvem os disparos e apavorados aceleram tanto o carro olhando para trás na tentativa de ver de onde vem os tiros que não enxergam Ellie que está atravessando desesperadamente a rua para se salvar também. Claúdia grita e César para o carro para socorrer a garota que está desmaiada. Marilena levou dois tiros nas costas ao ser confundida com uma das garotas que trabalham no tráfico da favela do bairro.
A milícia não teme quem está passando e nem se intimida. Matam simplesmente. Acharam que Marilena era uma das “x9” do bairro, ou seja a pessoa que leva informações secretas da administração das bocas de fumo do bairro às outras que eles competem. Não importa a idade nem o sexo, neste caso mata-se o “traidor” e pronto. Isto serve de exemplo principalmente para as crianças que crescendo por ali, vêem isto e aprendem a não levar informações às bocas de fumo “inimigas” e neste caso, sejam fieis à sua tribo ou gangue. Jean abraça fortemente Anderson e neste momento pensa “Se eu morrer hoje, morro ao lado de quem eu realmente amo.” E chora de emoção e pavor. Anderson vê as lágrimas caírem no rosto de Jean e as enxuga carinhosamente. “Vai ficar tudo bem amor, eu prometo.” Disse Anderson apaixonado ainda por aquele homem que ele conhece desde a sua infância. Katie vê César e Cláudia pegando Ellie desmaiada para levá-la para o hospital público e pede para ir junto pois conhece ela da escola.
Começa a chover de repente. Jean diz para Anderson que vai assumi-lo como o seu namorado e que nada mais vai impedi-los de serem felizes. Nada mais. Dentro do carro, Katie olha para o vidro do carro, molhado e embaçado pelas gotas de chuva e pensa “Estamos todos perdidos. Sofrendo juntos o tempo todo. Acho que as desgraças e as tempestades que vem para nos destruir acaba por nos aproximar daqueles que parecem diferente de nós mas que no fundo, sofrem e padecem da mesma forma que todo mundo. Não importa ser branco, negro, gay, hetero, bonito, feio, magro, gordo.
Estamos juntos nessa rede de dores e adversidades. E é ai que percebemos por vezes que somos iguais. Através da dor, do sofrimento. Que isto que eu esteja pensando pensem outras pessoas também, para talvez quem sabe um dia sejamos mais unidos e combatemos esses preconceitos, rótulos, estigmas e ideais em nome do consumismo que nos cerca como religião e que faz pulsar o coração do sistema: o dinheiro, que alimenta cada vez mais a ganância de quem já tem o bastante e se sente insatisfeito. Quer mais. Quer mais morte, quer mais violência, querem mais dores, mais injustiças em nome do capital. Que a paz um dia que eu sonho esteja em algum outro mundo, pois neste aqui nunca haverá. Nunca...” Uma lágrima rolou em seu espírito cortando-lhe como uma navalha a sua alma e sangrando sua consciência com o peso destes pensamentos que estão soltos e livres para lhe trazer a verdade. “A verdade está dentro de nós, só dentro de nós...” Pensou ela olhando para o retrovisor do carro de onde dava para ver César aflito e desesperado para chegar logo até o hospital numa fé de encontrar algum leito por lá senão terá de ir para outro e tentar e tentar até achar. Cláudia chorava ao sentir o caos externo e interno. “Que mundo meu Deus, que injusto. Espero que nada demais aconteça com essa garota Senhor, pois não irei me perdoar.” Orou chorando silenciosamente enquanto passava os dedos da mão direita entre os lábios, aflita e angustiada. “Eu tenho que dar mais valor a minha família. Tudo pode acontecer a qualquer hora e qualquer momento. Obrigado por me dar esta luz Senhor, obrigada...” continuou sua prece com o seu Deus.
No dia seguinte, Jean assumiu o seu relacionamento com Anderson para a família e para sua surpresa, não foi expulso nem demitido da empresa. Seu pai lhe dissera que já sabia e que só estava esperando ele contar e que teria que se preocupar em contar isto à Camila, que com certeza não vai reagir como ele. Jean nunca se sentiu tão leve em sua vida. Nunca sentiu tanta alegria queimando em seu espírito. Parecia que havia alcançado a paz dos céus. Estava se sentindo a pessoa mais feliz do mundo, a mais sortuda também. Ellie passa bem no hospital. Está sob os cuidados da família, de César e de Cláudia e de Katie, sua nova amiga. Marilena sobreviveu aos dois tiros que levou nas costas e recebe seu marido e filho no hospital que levam flores para agradar-lhe. Tudo em paz nesta manhã num mundo de Caos. Tudo em paz na desordem do mundo. Mas tudo em paz.