170 – UM BÊBADO FILÓSOFO...

Tal qual um espetáculo circense, retorcido em maluquices, um bêbado enlouquecido sorri de si para si, acha graça da sua graça sem graça, imperturbável, senhor dum picadeiro fictício, ele gesticula olhando para as suas macaquices refletidas no espelho d’água do chafariz da praça!

Ele faz careta, contorce e retorce os lábios, das vezes abre a sua boca sorrindo escancaradamente, mas é um sorriso triste, talvez esteja sorrindo da sua própria desgraça, fecha um olho e abre o outro, pisca, rodopia, sempre mirando na sua imagem refletida, um tanto desfigurada, que no balançar das águas se decompõe, se compõe, se decompõe, se compõe, e assim ele consegue atrair a atenção de algumas pessoas para lhes pedir uns trocados.

Nas proximidades um carrinho de lanches, cheiro irresistível de pastéis fritos, alguém calmamente observa o bêbado em suas estripulias, aguardando que seu pastel fique pronto, assim que é servido senta-se em um banco próximo ao chafariz e se põe a saborear o seu petisco, entretanto o bêbado sentindo o aroma agradável do pastel se aproxima:

- Quando eu tenho alguns trocados eu também gosto de comer deste pastel vegetariano!

O moço entendeu perfeitamente o que o bêbado quis dizer nas entrelinhas de suas palavras, e prontamente pagou dois pastéis vegetarianos para ele, ambos ficaram sentados no mesmo banco, calados, saboreando os pastéis e observando o ir e vir das pessoas, dois mundos completamente díspares agora unidos pela boca e pelos olhos. Foi quando o moço olhando diretamente nos olhos do bêbado, perguntou:

- Porque você não procura uma melhora para sua vida, com um mínimo de esforço você poderia viver bem melhor!

- Isto não mais me importa, o que importa é que estou esperando a morte, só a morte será capaz de me libertar!

O moço assustou com aquela resposta:

- Só a morte será capaz de te libertar?

- Sim!

- Mas você é livre, você é dono de si, da sua liberdade, do seu mundo!

- Engano seu! De uma forma ou de outra, todos nós somos escravos, temos raros e pequenos momentos de liberdade, só somos livres quando não dependemos de nada e de ninguém, e isto é praticamente impossível, então a escravidão é imperiosa e farta!

- Mas eu sou livre, sou dono da minha vontade, faço o que quero!

- Engano seu! Fingimos que somos livres, mas na verdade és tão escravo quanto eu, tanto quanto a todos, o ser humano desde o dia que nasce já é um escravo, e pressentindo isto, desacoroçoei de tudo!

- Posso te provar que sou livre!

- Moço, não perca seu tempo, já matutei o bastante para concluir que somos escravos desde o dia em que nascemos, para que a vida não seja tão maçante fingimos que somos livres, nos acostumamos com a escravidão, e até somos felizes assim, mas é esta uma maneira estúpida de nos sentirmos livres, entretanto, inexiste outro jeito de encarar a vida sem sofreguidões, mesmo eu na minha insignificância continuo escravo, só a morte é capaz de nos libertar.

O moço se interessou pela prosa do bêbado, passou a admirá-lo, olhou-o com outros olhos, aquele maltrapilho era um filósofo, pediu mais alguns pastéis vegetarianos e a conversa continuou animadíssima!

- Explique melhor esta sua filosofia que ao nascer já somos escravos!

- Isto é fácil, quando você nasce já é um escravo, você já é escravo do seu estômago, você sente fome, você tem necessidade de se alimentar! Crescido você tem que lutar para sobreviver, então você se torna escravo do seu trabalho, escravo da sua empresa, escravo da sua profissão, somos escravos remunerados, de uma forma ou de outra, remunerados, nada é de graça neste mundo, eu sou remunerado pelas esmolas que recebo, sou escravo destas esmolas!

Eu que lutei tanto, não para me libertar, porque sei que isto é impossível, mas para tornar esta escravidão mais agradável, menos sofrida, menos dolorida, estudei, fiz faculdade, com muito sacrifício fundei uma construtora de imóveis, assumi compromissos e mais compromissos, responsabilidades e mais responsabilidades, os grilhões escravocratas então se mostraram mais nitidamente, mais claramente, a partir de certo momento não somos mais donos de nós mesmos, e a situação piora quando adquirimos algo de valor, que seja uma empresa, propriedades, ou outros bens quaisquer, passamos a ter medo de perdê-los, então tornamos escravos destes bens, quanto mais possuímos mais escravos somos. É um encadeamento de escravidão, os que estão acima escravizam os que estão abaixo, os que estão abaixo escravizam os que estão mais abaixo, e os que estão no topo tornam-se escravos de si próprios, passamos a ser governados pelas circunstâncias, pelos compromissos, e os que fracassam, assim como eu fracassei, o desprezo, que não deixa de ser outra forma de escravidão...

O moço contristou e fixou os olhos no calçamento, se imaginou, se sentiu escravo, escravo do relógio, do trabalho, do estômago, escravo dos compromissos, se sentiu escravo até da sua namorada, que era muito exigente quanto aos horários de encontro, quanto à sua aparência, não conseguiu visualizar um só momento na sua vida que não fosse escravo...

O bêbado parecendo se preocupar com o resultado da sua filosofia tentou remediar:

- Moço! Não se preocupe, passe pela vida como que não passasse por ela, não se apegue a nada, tenha tudo o que puder, mas não se apegue aos bens, nem nas coisas adjacentes como posição social e outras etiquetas da vida, seja usufrutuário de tudo, não tema perder o que conquistou, nem avance aceleradamente contra tudo o que tiver no seu alcance, reserve alguns minutos da sua vida para se sentires livres, se imagine liberto, mesmo que seja somente no pensamento, liberdade é nada possuir, possua, mas se imagine desgarrado de tudo, livre, solto, e estes serão os seus momentos de liberdade, aproveite isto, pois a vida é um sonho de outro sonho mais além...

O moço se levantou do banco, no que foi acompanhado pelo bêbado, então o abraçou como se abraça uma pessoa queridíssima, deu-lhe alguns trocados, se despediram, e sentiu que não era mais o mesmo, alguma coisa havia mudado na sua vida, na sua maneira de pensar e de encarar o mundo, e por mais paradoxal que possa parecer, toda esta reviravolta foi causada pelas palavras de um bêbado filósofo...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 13/09/2013
Reeditado em 08/03/2014
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