Uma perna para o meu avô

Meu avô morreu dormindo e continuaria ali , dormindo o grande sono como se fosse um outro sono , com a alma gargalhando de ter enganado a gente, se minha mãe não percebesse , tentando acordá-lo para a comida da manhã . Eu não gostava de vê-la despertar cedo meu velhinho, pois ele sonhava muito e passava a manhã inteira me contando os sonhos , com um brilho nos olhos , que apenas fitavam de mentirinha as montanhas distantes e as savanas .Eu olhava embevecido os seus olhos, que tinham umas rodinhas brancas engraçadas , abraçando as meninas dos olhos.

Meu avô, Mahbub já não enxergava há seis anos ;um dia , um médico americano muito grande, de cara vermelha, falou em catarata , mas viajou para outras terras antes de operar o meu avô e ele continuou sem enxergar nada , mas nunca se importou com isso, pois seu pai, também ficara cego e morrera do coração , há muitos anos atrás . O doutor explicou que os anéis em volta das meninas dos olhos não eram a catarata , mas também apareciam nos olhos de gente velha ; a catarata era mais para dentro . Minha mãe ficou preocupada, pegou o espelho e ficou se olhando um tempão ; o doutor riu e falou que ainda faltava um bocado de tempo para os anéis dela nascerem. Depois, fez cara feia pra mim , pois soprei nos olhos do meu avô ,tentando mexer a água da catarata e vê–la.. Mas a perna de madeira, ele disse que ia demorar um pouco , mas chegaria no próximo carro da Cruz Vermelha e deu á minha mãe um papel , para ela receber a perna e botar no meu avô , quando o caminhão de pernas passasse por aqui , pela aldeia .

Fiquei muito triste , mas sabia que meu avô estaria cantando e dançando, lá nas savanas eternas, pois cantara e dançara a vida toda aqui . Não entendi o choro de minha mãe, que batia a cabeça no chão e exclamava maldição para todos nós . Deixei que muita água saísse dela e perguntei pela maldição .

- Nanji, Olorum nos castigará duramente, teu avô vai retornar para ele sem uma das pernas, tudo no mundo é de Olorum , inclusive nós e nossas pernas. Isso atrai castigo, pois Olorum nos deu tudo e tudo devemos levar de volta.

Aquilo tudo confundiu minha cabeça . Olhava ao redor, nada via além do meu avô no pálido sossego dos mortos , sobre uma esteira ; o toco da perna envolto por uma manta ; o cheiro da comida pouca oferecida pelos chapéus azuis enchia minha cabeça e meu nariz, mas a fome veio e passou com a ventania lá fora.Saí e vaguei pela aldeia muito tempo. Vez por outra, passava alguém mutilado pelas minas milicianas e eu imaginava quanta ira caberia no coração de Olorum , com tantas pernas e braços roubados pela guerra , fazendo companhia á perna do meu avô , mutilado por pisar numa mina ,o velho Mahbub, um homem bom e honesto .

Não sei quanto tempo passei vagando pelo campo . Voltei para casa exausto, mais de pensar que de caminhar . Se meu pai fosse vivo, já teria pensado alguma coisa, mas a guerra levou-o nos seus dentes; tive um irmão gerado á força , durante um ataque dos milicianos , mas nascido morto pela graça de Olorum e pela tristeza de minha mãe, que chorou até a pequena criatura arrebentar-se dentro dela e sair num rio de sangue, feito peixe esmagado .

Dormi um sono pesado e sem sonhos.Pela manhã, um cheiro de morte começou a crescer em nossa casa . Minha mãe voltou a chorar e agora se descabelava , eu alisava suas costas mas as palavras não desciam da cabeça até a minha boca.

Meu avô continua na esteira, cercado de flores, nenhum vizinho apareceu , pela vergonha do defunto perneta que obrigava minha mãe a esconder a morte . As moscas varejeiras começaram a fechar o cerco ;uma mancha esverdeada já aparecia sobre a barriga do meu velho : a morte fazia a sua parte .Saio envergonhado , triste e me escondendo de mim mesmo ; contornei a aldeia, cheguei até o riacho , sentei na margem e tentei escutar os sons do mundo, mas a África inteira não me dizia nada .

Do outro lado, vi Nassar ,o mercador de peles, concentrado no seu banho , usando até o sabonete dos chapéus azuis .Coração acelerado, atravessei o riacho pelo trecho mais distante e cheio de árvores ; dentre as roupas de Nassar puxei a sua perna de madeira , esquerda, tal a do meu avô .

Corri, o coração na garganta , a distender-me o pescoço . Colocando a perna por dentro da roupa , na parte das costas, fingi uma outra alegria e pedi á minha mãe o papel que dava a garantia da perna de meu avô ; ela me olhou , olhos vermelhos de choro desesperado ; depois , pura surpresa , pois não ouvira o barulho da chegada do caminhão das pernas ; perguntou que hora o carro chegara ; não respondi , não sabia mesmo o que dizer .Tirou o papel de um bolso , entregou- - me , em chorosa desconfiança .

Escondi a perna atrás do depósito d’água, caminhei até o prédio dos chapéus azuis, entrei na pequena sala de espera, um deles sorriu meio esquisito , olhando de perto o seu relógio , preto e cheio de pinos. Falei que estava doido por um dos chicletes de menta , chegados semana passada . Ele levantou da cadeira , passou por um corredor, enquanto eu abria sua gaveta , pegava o carimbo e tascava “ENTREGUE . ONU” , no papel todo amassado . Recebi sorridente o chiclete e saí ; o sol já estava alto e me obrigava a proteger os olhos.

andre albuquerque
Enviado por andre albuquerque em 25/07/2013
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