In memorian

Parado sob o sinal , próximo do aeroporto , ás onze da noite ,a boca seca de ansiedade ,o prazer antecipado .A avenida estendia –se á sua frente , os semáforos em sincronia, permitiam-lhe um avanço mais rápido ; tudo conspirando a seu favor . Até a chuva, que martelara a cidade desde cedo , dava sinais de cansaço ; agora, pouco mais que uma neblina . O velho fusca deslizava tranqüilo na direção da zona norte . O tráfego rareava , até para uma quinta – feira. A escada dobrável , repousava sobre o banco traseiro , rangendo a cada buraco da pista evitado ou explorado pelos pneus ;dificultava –lhe a visão traseira , mas continuava indispensável e de fácil transporte

. O rádio tocava Elza Soares , que ele acompanhava animado, batucando no volante , ás vezes cantarolava um pouco , tentando esquecer o dia de cão que tivera , encarando supermercado lotado , caixas eletrônicos sem dinheiro , uma via crucis para pagar uma conta de luz.Ás vezes esquecia até da escada ; pensava se não seria melhor ter ficado em casa , assistindo a um filme , acariciando timidamente os seios de Darlene , sonolenta e morna , a cabeça cheirosa a resvalar no cochilo , vez por outra.Mas era hoje ou nunca , sua teimosia não admitia talvez, ao tratar com desafetos.

Saiu da Mascarenhas de Morais e tomou a Avenida Sul ., em direção ao centro antigo da cidade , ás onze e quinze . . Tateou o porta luvas , em busca do isqueiro , acendeu um cigarro , o eterno penúltimo . Lembrou do velho Ubiratan , colega da seção de transportes, boa praça mas inimigo de cigarro , explicando que o cigarro era apenas um canudo , com uma brasa numa ponta e um imbecil na outra . Manjado, mas verdadeiro . Sorriu , embalado pelas recordações . O velho Ubiratan e sua raiva santa do cigarro ;.

apaixonado por uma boa pinga ,”namoro velho de quarenta anos” . Traçava a maldita numa boa , no bar do Léo ,estalando a língua e aparando a fatia de toscana, á maneira das focas, o bocaréu aberto. Á essa hora , repousava entre os justos , infartado durante uma discussão com a esposa , perita em ninharias e artimanhas letais ás coronárias do velho amigo. “Que Deus o tenha e a mim não desampare” , filosofou olhando a chuva fina , a lamber os prédios antigos .

Oito anos de aposentadoria ,as lembranças dos amigos e colegas de trabalho iam ficando mais suaves ; da nostalgia inicial ,ficara uma saudade cinzenta e a sensação do fluir do tempo , atropelando as amizades fraternas ,as superficiais , os ódios cevados no dia a dia do rancor acumulado . Admitia tudo , menos perseguição e humilhação por chefe de seção, colega ou seja lá quem fosse ; a coisa mudava de figura . E o pau cantava.

As recordações fluíam agora mais vívidas e rápidas , perturbavam - no , mas que poderia fazer ? Rancor era parafuso desenroscado , em se tratando de humilhação.

A antipatia pelo ex chefe passara a nojo , revolta , ódio ruminado e acondicionado num desvão especial do cérebro , que tentara isolar , mas que não controlava , não conseguira arrefece –lo durante oito longos anos . A memória não deixava . Humilhação é brincadeira para quem faz , até para quem presencia , mas só o humilhado sabe que aquilo é humilhação , avacalhamento ; brincadeira é uma ação entre amigos que se respeitam até nas gozações mais pesadas , trocando piadas de sacanagem , pondo apelidos sacanas .Ele, um cara que prezava a amizade acima de qualquer coisa não merecia aquilo ; já preferira o bebericar com os amigos á visitar os sogros pernósticos e quando a esposa reclamou , entre gritos e lágrimas de recém-casada , arrumou a mala e tornou á casa dos pais .Voltou , á base de choro e rapapés. Darlene conhecia o seu homem .Mas isso era outra história .

Lembrava –se como se fosse hoje . Lá na garagem , no dia em que se atrasara, seu carro estrebuchando em pane seca , pela grana curta , a cinco quadras da repartição .E lá estava ele , o famigerado . Pequeno e ruim .Tamborete de puteiro , como era conhecido , cofiando furiosamente os fios da barba tingida , olhar fulminante e ensaiado para uso nos subalternos , mãos nos quadris e voz esganiçada de raiva , a chama –lo de irresponsável , vagabundo , ”descompromissado com o trabalho ” na frente de todos , até retirou da parede o mapa do Estado , colocando –o sobre sua mesa e ameaçando transferi –lo a um palmo de distancia da capital , medido ali no mapa, uns bons setecentos quilômetros , caso ele abrisse a boca ; logo ele , respeitador e arrimo de família . Desde então , a vida funcional tornou –se um inferno , as piores viagens unicamente para ele , desrespeitando escalas , pagamento de diárias e tudo o mais . Lembrou do último dia de 1999 , dirigindo sozinho um furgão no meio do nada , em pleno sertão , ás onze e trinta da noite , o rádio do carro por companhia , escutando o espocar de fogos ao longe , sem tempo para chegar em casa , sem tempo de comemorar seja lá o que fosse . E ainda agüentar a gozação por “virar o século na reta de Ibimirim”, na volta ao trabalho.Mas acontecera e engolia mais esse sapo ,dos mais graúdos .

Seu carrasco parecia desafiar o tempo , até cair fora , numa mudança de governo. Sumiu , escafedeu –se . Designado para outro órgão , onde trabalhava nos dias mais adequados á sua preguiçosa arrogância . Depois , soube que se aposentara . Mas a humilhação ficou ali , fogo de monturo , queimando devagar e sempre , o ódio em estado vegetativo e impotente . Passaram –se oito longos anos , até o telefonema de Rivaldo , o estafeta , evangélico dado a falar difícil, avisando –o sobre a data da confraternização anual e informando da morte do doutor Agapito ,” alma sebosíssima , a reforçar as hostes do Tinhoso”.

Cruzando o centro antigo da cidade , tomou a Rua da Aurora . Após cinco minutos , atingia o seu objetivo . Estacionou sob um frondoso oitizeiro ,que sombreava a calçada ainda úmida de chuva . A rua ,um deserto . .Abriu a porta direita , inclinou o banco , retirando a escada novinha e dobrável , pés com proteção de borracha e abriu o porta luvas, onde pegaria uma lanterna .Todo cuidado era pouco . Sobraçou a escada, até o ponto mais baixo do muro do cemitério . Emocionava- se .Surgiu a sensação de peso tão familiar , tomando –lhe o baixo ventre . Sempre á espreita , percebeu a ausência de qualquer tipo de vigilância no local . Nunca imaginara que o cemitério com seus magníficos jambeiros , carregados de frutos tão admirados , (desde que não revelada sua procedência ), fosse tão repulsivo , a ponto de desestimular até os ladrões de frutas . A opressão crescia em extensão e intensidade , evoluindo até a dor surda e angustiante. .Armou a escada , fixando –a contra o muro recoberto de limo e rachaduras . Escalou com dificuldade ; a dor mais forte a cada degrau . .Sentado no muro , puxou a escada e colocou –a para dentro do campo santo , ligando a lanterna . Desceu rapidamente ; já cambaleante de dor , venceu com dificuldade os doze metros entre o muro e a sepultura imponente e escura , a cruz de mármore encimando uma parede , que incrustava a foto meio desfocada de um homem cujo olhar transpirava altivez e orgulho , guarnecendo as datas de nascimento e morte , circundada pela frágil moldura em tom dourado escuro . Não se contendo , abriu o zíper da calça e mesmo na urgência imperativa , esvaziou num longo, certeiro , borbulhante e potente jato, a tão abarrotada bexiga , sobre o rosto de olhar severo , truculento e pouco pranteado do doutor Agapito Fontoura de Brás e Silva Fortignon , de infausta memória .

andre albuquerque
Enviado por andre albuquerque em 20/07/2013
Código do texto: T4395638
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