Jullian: Infância.

Um texto que fiz para um trabalho escolar.

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Jullian: Infância.

Capítulo único.

O vidro embaçado aprisionava os olhos, o cenário por defronte prendia sua atenção. Não, não, não... Cantarolou baixinho, o olhar preso na janela, olhando o mundo lá fora, vivendo. Nunca, nunca, nunca... Tornou a cantarolar, mordeu o lábio inferior e suspirou por fim. O mundo lá fora vivia, cá estava, preso. Donde viera a palavra preso? Quem a dissera primeiro? Quem haveria de inventar tal palavra? Liberto era tão mais atrativo, pensou.

Mas o quê era a liberdade? Os pássaros, talvez. Via-os belo, voando. De sua janela observava o mundo, tentando fazer-se notar, mordia o lábio inferior de quando em quando. Outro tanto de tempo perdido... Nunca, nunca, nunca, iria entender seus próprios questionamentos. Os olhos atentos às crianças que, livres, corriam pelo quintal do vizinho. Um cachorro, algumas galinhas, três crianças, uma bola e duas bonecas. Alguns sorrisos e uma mãe atenta aos filhos que desbravavam um novo mundo em seu próprio quintal, livres.

O sol forte parecia os abraçar, o vento que sacudia os galhos das árvores os embalar, o olhar da mãe os zelar. Quê é que sentia? Nada, nada, nadinha. Mordeu o lábio inferior, suspirou, baforou o ar quente de seus pulmões contra o vidro e ali desenhou uma pequenina cruz. Teria uma em seu velório? Iria morrer logo?

– Papai? - chamou baixinho, movendo o corpo para encará-lo.

– Sim? - o homem indagou sem fazer caso de encarar o menor, os olhos presos na leitura do jornal do dia, no rosto uma expressão austera.

– Demorarei muito mais tempo para morrer? - perguntou inquieto, mordendo o lábio inferior e unindo as mãos pequeninas quase numa prece desapercebida.

O homem franziu o cenho, desviando os olhos da leitura e finalmente pousando-os sobre o corpo esquio e franzino à frente. Oh, estava tão precoce! Tão magro e distante... Quando fora que seu pequeno começara a crescer tão, tão depressa? Nas horas em que passava no escritório no centro da cidade, talvez.

– De onde veio isso, menino? - sorriu, pousando o jornal sobre o próprio colo.

– A tia Lora disse que não tardarei a morrer. - segredou. - Quando?

– Oh... - fez, papai, atordoado. - Não vais morrer logo. - sorriu fraco. - És ainda muito jovem e há muito para que viva.

– Por que viver? - tombou a cabeça para o lado.

Papai engoliu ar, estupefato:

– Porque deves viver e ser feliz! - disse como se fosse óbvio. Que tantas perguntas adultas para um pequeno de sete anos, pensou. O rádio o estava influenciando... Só podia!

Três gestos negativos com a cabeça, os cabelos se movendo.

– Não quero ser feliz. - ditou, o pequeno.

– Como não? - papai indagou, assustado.

– Você é feliz, papai?

Silêncio.

– Já fui muito feliz. - murmurou após um tempo, papai.

– Não quero ser feliz. - tornou a dizer, decidido.

Quê que era a felicidade? O sorriso que as pessoas sorriam? Não, não, não... Cantarolou. Não gostava de sorrir.

Papai achou melhor voltar para sua leitura. Voltou-se para o quintal do vizinho, a brincadeira parecia pega-pega agora, rolou os olhos. Quem tinha rolado os olhos primeiro? Quem deu o primeiro suspiro? Quem, quem, quem? Quem haveria de ter amado... Primeiro? Quem inventou o amor?

Tic-tac, tic-tac, tic-tac... Fazia o relógio de corda, tão baixo e tímido que quase não conseguia ouvi-lo. Mordeu o lábio inferior. Fitou a estante de livros, cores, títulos, tamanhos diferentes, autores, línguas. O lustre grande e bonito poderia cair em sua cabeça e jorrar seu sangue pelo tapete cinzento. Nunca, nunca, nunca... Cantarolou baixinho. Quem havia cantarolado algo primeiro?

– Papai?

– Sim? - pousou o jornal no colo, novamente.

– Quando irá chover? - franziu o cenho.

– Ah... - fez, mordendo o lábio inferior. - O Sol está tão forte, pequeno. Talvez para o fim de semana...

– Mas ainda é terça-feira. - amuou, aquela expressão de criança entristecida.

Papai sorriu.

– Gostas tanto da chuva?

– Sim, gosto do som dos trovões.

Silêncio.

Papai, homem feito, não gostava dos trovões.

O relógio cantarolava seu tic-tac, tic-tac, tic-tac, baixinho. Podia jurar quase sentir o cheiro da terra, sentir o vento, aquecer-se com o Sol. Quando iria sentir algo? A dor não era mais algo realmente sentido, fitava a parede chapiscada e esperava a dor passar, logo passava ou não, não importava. Sentia? Não, não, não... Cantarolou baixinho. Mordia o lábio inferior, enrolava um cacho do longo cabelo nos dedos finos, treinava sorrisos no reflexo do vidro. Ah, nunca iria sorrir tanto belo quanto Isabel! Por que tentar, então? Nunca, nunca, nunca... Cantarolou baixinho, suspirando.

O tempo passava arrastava, impregnando as paredes com a doce melancolia. Logo a noite, estrelas e Lua. Céu escuro, bonito. Da janela, via a noite, linda. Quem conseguira fitar o céu primeiro? Qual o gosto da Lua? Onde encontrar algo semelhante as estrelas? Por que tantas perguntas? Ah...

– Aquiete-se e venha comer, Jullian. - papai disse, fumando seu charuto. O fumo de cheiro forte sujando seu paletó negro, a fumaça dançando bela pelo ar. Papai parecia jovem. Ah, jovem demais para àquela tosse seca e demorada.

Comer? Por que comer? Não sentia fome, oras. Nem sede...

– Não sinto fome, papai. - murmurou, ainda na janela. As crianças não brincavam mais.

– Não tomaste café também. - suspirou, o mais velho. - Adoecerá assim tão depressa que não poderei notar. - preocupado, papai largou o tabaco no cinzeiro e se aproximou do pequeno, agachando ao lado, acariciando o rosto oval.

Silêncio.

– Não devias cuidar de mim... - o pequeno ponderou após um tempo. Por que papai se importava? Nem a si se importava...

Quê se passava com esse menino? Papai indagou para si, pensando. Donde encontrar palavras para os ditos do menor? Riu baixinho.

– Amo-te. - disse, simples.

Jullian sorriu. Não diria amar papai também, pois desconhecia tal sentimento, então sorriu. Não gostava de sorrir, mas sempre o fazia quando não sabia o que dizer e, o sorriso aberto e alegre de papai lhe indicou estar no caminho certo. Papai era sentimental e vez ou outra lhe abraçava e pegava para dormir junto, cantarolando canções de ninar e emaranhando os dedos calejados em seus cachos. Parecia tão sincero...

Comeu mesmo sem sentir o gosto, bebericou um pouco d'água e por fim lavou a boca, logo caminhando para o quarto. O pijama de linho era grande para o corpo pequeno e tão magro, as mangas engoliam as mãozinhas, a barra da calça causava alguns tropeços pelo assoalho de madeira, os cachos soltos chegando já na cintura. Papai era tão másculo e viril... Donde viera tanta feminilidade assim para si? De mamãe? Talvez.

Era considerado andrógeno pela sociedade, não gostavam e, acabavam o maltratando com palavras rudes muitas vezes, mas não ligava para a estupidez de outrem, não mesmo. Nunca, nunca, nunca... Cantarolou baixinho, caminhando até o quarto iluminado fracamente pelo farolete. Papai não gostava quando era chamado de menininha e afins, certa vez até entrara numa briga, mas nada tão grave. Riu baixinho ao lembrar de papai usando palavras feias para o ofender o homem que outrora ofendia a si, papai era tão sério e comportado que vê-lo tomando atitudes descompassadas era engraçado.

– Boa noite. - ouviu a voz áspera de papai que caminhava para o próprio quarto.

Sorriu pequeno, se aproximando do mais alto.

– Amo-te, também. - murmurou tão baixo que quase não ouviu. Papai ficaria feliz, certo?

Fora erguido do chão e abraçado com tanta força e, tão depressa que nem deu-se tempo para se perder em divagações. Papai era mesmo, mesmo, mesmo muito sentimental.

– Não diz-me isso desde que tinhas três anos. - gracejou, guiando-se para adentrar o quarto do pequeno com o mesmo no colo. O pôs na cama, cobrindo-o com a coberta azul de bolinhas brancas, beliscando o corpinho de leve e arrancando um riso ou outro. - Durma bem... - desejou, beijando-lhe a testa de forma carinhosa. O cheiro do tabaco...

– Cante. - pediu, fechando os olhos. Aconchegou-se para mais perto do pai e este sorriu, tão adulto e infantil seu filho, só poderia sorrir, mesmo! Negando com a cabeça, sentou-se na beirada da cama, logo acariciava os cachos desgrenhados do pequeno.

– Brilha, brilha estrelinha... - papai começou a cantarolar baixo, sussurrando.

Quem inventara tal cantiga de ninar? Por que ainda precisava desta para adormecer? Por que? Quem? Qual? Onde? Aonde? Não, não, não... Sem mais perguntas.

Adormecera.

Camylla
Enviado por Camylla em 20/07/2013
Código do texto: T4395515
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