NOME TURCO

Cá estou na antessala do consultório dentário entre mil anseios e mil temores. Não. Os temores não se devem ao procedimento odontológico que enfrentarei. Isso é fichinha. É café pequeno perto daquilo que me aflige realmente. Folheio em vão uma revista de futilidades televisivas na tentativa de espairecer, de relaxar. Minha aflição é que hoje a sala tá cheia e já, já a assistente do Dr. Gouveia surgirá na portinhola com sua voz de taquara rachada e anunciará o meu nome. Todos se entreolharão perplexos e se virarão para minha direção. É certo. E, como de praxe, saltarei em prontidão na agilidade de um Homem-Aranha, de um ninja, de um vulto sorrateiro, evitando assim que a moça me chame novamente. E que ao repetir meu nome retire a dúvida a pairar no semblante dos presentes: ‘será que ouvimos direito.... É esse o nome dele mesmo?’

Ana, minha melhor amiga, me garantiu que quando eu completar a maioridade poderei ir ao cartório e mudar de nome. Diz que o processo costuma demorar entre três e seis meses, tempo para se verificar se por acaso a mudança de nome não é uma tentativa de evitar alguma responsabilidade, então consultam certidões de protestos, de processos cíveis, criminais e trabalhistas, e das Justiças federal, eleitoral e militar.

Só com 18? Poxa, tenho catorze anos. Então restam ainda quatro de martírios. Ah, mas aí o pior já terá passado. A barra é agora. Adolescência. As minazinha nos bailes. A zoação na escola. Aos dezoito o estrago já terá sido feito. Aí só terapia para amenizar os traumas. A lei tem que me ajudar, caramba. Cadê o Estatuto da Criança e do Adolescente? Esse ECA é uma eca mesmo. Me assegura um monte de direitos, alguns controversos, e o que eu preciso, nada. Neca de pitibiriba?

É que eu era uma criança inocente, um bebê risonho e rechonchudo que só queria saber de mamar, dormir e mijar. E gorfar. E cagar. Caso contrário, quando minha mãe veio com esse papinho de 13, iria protestar na hora: - porra, mãe, Gledivaldowilson. Não!

A turma lá de casa me chama de Valdo, ou simplesmente, Val, porque cá pra nós Gledivaldowilson não é nome, isso é um baixo calão. Palavrão daqueles de menino levar tabefe na boca e de ajoelhar sobre o milho.

Acho que mamãe fez isso de sacanagem. E da braba. Meu pai a abandonou no quarto mês de gestação. Ficou deprimida, revoltada, rejeição de gravidez. Acho que ela pensou, ah é, Zé Felix, cedo ou tarde você vai voltar querendo conhecer teu filho, aí vou jogar o pirralho nos teus braços, você com aquela cara de pastel de fim-de-feira perguntando o nome da criança e gritarei em alto e bom som: Gledivaldowilson.

A zoeira na escola? Tem a porra de um moleque que fica a aula inteira me amolando, repetindo meu nome com um mantra. Gledivaldowilson. Gledivaldowilson. Gledivaldowilson. E um outro que nem da minha sala é, todo dia, no intervalo pro recreio, passa correndo, grita meu nome e me dá um tapa na testa. Isso é bullyng, meu!

Eu nunca. Nunca fui sincero com ninguém ao responder a pergunta - aquela perguntinha infame e inconveniente: Como você se chama?

Meus amigos do grupo de escoteiros me chamam de Wilson, ou carinhosamente de Wil, porque concordem comigo Gledivaldowilson não é nome de gente. Pela madrugada! Isso é nome de fármaco, desses que a gente encontra em bula de remédios ou, sei lá, algum composto químico. Será? Consultarei a tabela periódica.

E João Caio, irmão de minha mãe, folgazão e galhofeiro (todo mundo tem um tio sacana). Quando me via com a farda de escoteiro fazia mofa: “sabe o que significa escoteiros? um monte de criança vestida de babaca seguindo um babaca vestido de criança. Pura maldade. Sobre o meu nome meu tio fanfarrão foi inclemente e me apelidou de O Trava-Línguas. Sacanagem, né.

A única vantagem de ter um nome esquisitão é na hora de abrir uma conta no Hotmail, Gmail e etecéteras. Não preciso fazer trocadilhos com meu nome, abreviar, colocar números, siglas, sinais de pontuação. A Ana, a minha melhor amiga, o email dela é hanna99 – com agá e dois enes e o 99 que é de 1999, o ano que ela nasceu. Abri minha conta no Facebook, Twitter e Orkut sem estresse. Mas quer saber que se dane o tal de Büyükkökten. Eu queria é ter um nome de verdade, nem que fosse necessário colocar datas, arrobas e asteriscos pra abrir uma conta numa rede social.

Orkut Büyükkökten! Esse é o cara que bolou esse papo de Orkut. O cara nasceu lá na Turquia. Se eu trombasse ele iria dizer que ele também é um Trava-Línguas.

O pessoal lá do Grêmio Savóia, onde disputamos o 2º quadro da várzea, me chamam de Edivaldo, ou ocasionalmente, de Eddy, por que, boca de siri, mas Gledivaldowilson não é nome, é exercício de fonoaudiólogo pra se melhorar a dicção. Vai ter nome enrolado assim lá na Turquia!

A portinhola foi aberta. A assistente do Dr. Gouveia irrompeu. Não era a de sempre, a taquara rachada. Era outra, mais velha. Papel em mãos, sobrancelhas franzidas, a mulher parecia segurar um pergaminho em aramaico, galaico-português ou esperanto. Gle... Gle... Gle... gaguejava, talvez incrédula. Será que existia um filho de Deus com aquele nome.

Seria um erro de digitação.

Saltei como um gato.

- Sou eu – ri um riso sem graça.

- Nossa! É esse o seu nome mesmo. Exótico, não

- Sim... É nome turco.