A Invasão dos Ratos
Era segunda-feira e acordara aquele dia com febre.
No dia anterior eu havia ido caçar lebre e acabei machucando, arranhando em um espinho. Este era espinho rasteiro, fiquei tonto e isto me deixou cabreiro. O espinho tinha substâncias especiais, daquelas que eu não recomendaria jamais.
Fui à farmácia e no caminho parei para um café. Com o corpo em desconforto fiquei a olhar para todos os lados, até que direcionei a minha atenção para a conversa da mesa ao lado.
Eram duas velhas senhoras. Uma era morena, muito fogosa e falava de forma manhosa. A outra, tinha os cabelos todos brancos. A primeira virou para a segunda e começou o seu diz que me disse, até para fugir da mesmice.
Houve certa vez em uma cidade, e isto é verdade, uma grande invasão de ratos. Estes eram imensos de tamanhos proporcionais aos de gatos. De todas as cores, para todos os dissabores. Rato branco, rato preto, rato manco, rato louco. Rato sem dente, com dor de dente, ratos sorridentes ou de todos descontentes.
Deixando as entranhas dos encanamentos que traziam a água para a cidade e levavam o esgoto para o lago, onde eles estavam sossegados, como que houvessem recebido ordem de comando e em bando, adentraram na cidade. Eram milhares, como a voar pelos ares.
Entraram pelo cais. Em volume e quantidade inimagináveis, insondáveis, imperscrutáveis. Jamais se viu tantos ratos.
Em seguida adentraram pela Avenida Esperança, quanta desesperança. Ratos gemendo, homens se escondendo, se condoendo. Deslocaram-se em direção à Prefeitura, onde rola muita usura. Em segundos, estavam no gabinete do Prefeito, foi extirpado, destronado. Oh! Coitado!
Enquanto o Prefeito descia descalço correndo as escadas com os ratos em seu encalço, do outro lado do quarteirão vinham os vereadores, os surrupiadores, e mais algumas centenas de milhares de ratos atrás.
Deram de frente! O Prefeito e o presidente da Câmara, primo da Mara que é amante da Lara. Testa a testa. O resto dos vereadores trombaram nos assessores do Prefeito, com outros ratos atrás. Foram destroçados, alguns conseguindo correr, foram apenas escorraçados, puderam pelos seus entes serem abraçados.
A cidade, ou melhor, o pequeno vilarejo se encontra encravado ao lado de um pequeno lago no fundo de um vale e é cercado por inúmeras montanhas, muito pouco perscrutadas por mãos humanas, soberanas.
Até àquele dia, era um lugarzinho muito pacato. Moravam ali umas setecentas pessoas. Na maioria casais de meia idade que vieram para ali ficarem sossegados, despreocupados. Seus filhos, em maioria, moravam na cidade grande, em grandes centros urbanos muito longe dali. Ali, era muito calmo, quase alvo, pelo menos a falar de alto.
Os rebentos ficavam até à adolescência. No princípio da juventude deixavam o lugar para, Graças a Deus, nunca mais voltarem. Talvez em alguns casos excepcionais. Vinham a cada cinco ou seis natais, e isto, para relembrarem aos pais que são filhos e querem parte na herança, pois são suas crianças.
Nisto os animais racionais se diferenciam dos que não são. E isto é de fácil elucidação, haja vista que um deles é desprovido de compaixão, abandona então, a sua filiação. Outros filhos desnaturados, desestruturados, o faziam vestidos de preto, e isto era por ocasião do velório, na maioria das vezes mui simplório, isto era fato notório.
Os que moravam na cidade eram em sua maioria aposentados que passavam os dias todos sentados e andando de lado a lado, ou então, simplesmente parados. Despreocupados.
A Guerra Santa não lhes causava problemas. O “cálice de tropeço” que é Jerusalém, a cidade de Salém, como os sábios profetas já diziam, isto apenas os entretiam, se divertiam.
No final do séc. XIX, com a recriarem o Êxodo, os judeus começaram, com se comandados por um Josué invisível, a tomar novamente possa da terra. A Terra Santa! “Não há nada de novo sobre a terra” já foi dito em algum lugar, somente para nos certificar.
Nossos personagens gostavam de ficar sentados confortavelmente em suas poltronas, algumas eram feitas de simples lona. E postavam ante a “caixa que fala” e ficavam a se encantar com ela, choravam com ela, sorriam com ela. Conversavam com ela e obedeciam a ela.
Na verdade, ficavam mais a ouvir, até pois, um humano falar com um objeto pega mal, não é um fato casual. E ficavam lá! Entretidos, atrevidos, como ouvintes atentos. Eram sós, ela lhes davam alento.
Mas para desalento.
Chegaram os ratos!
Gatos?!
Nunca mais se viu, nenhum sequer. Os bichanos, pegos de surpresa, se embrenharam na mata que cercava a cidade. Alguns, mesmo contra a natureza, saíram a nadar pelo lago, era gato para todos os lados e os ratos atrás.
Os habitantes, honrados senhores, amabilíssimas senhoras, foram surpreendidos. Alguns, em fragrante delito.
O seu Farias da farmácia saiu correndo da casa da Eugênia, foi a maior baixaria, putaria. Era irmã de sua mulher, não era uma qualquer. Os dois, com roupas de baixo, saíram da casa da Eugênia a correr, e os ratos atrás. Foram para nunca mais.
Houve outros casos mais mas para não enaltecer eu o fuxico, não abrirei o meu bico. Somente que, falo do seu Chico. Ele era muito rico. Casado com a Maria, filha do Bel da carpintaria. Ele disse que sempre a amaria, que nunca a trairia.
E isto, ante Deus e os homens. Na frente do padre, com a complacência do frade, envoltos pela Irmandade. Deu o maior alarde e sua alma acho que arde. Já era tarde.
Estava com a filha do seu Antonio que vendia gás ozônio. Seu Antonio ia chegando ao lar e ao chegar viu a filha a amar, a adulterar, descendo às escadas junto com o seu cúmplice. Foi uma sandice.
Todos correndo e os ratos atrás, não volveram para trás. Não foram longe aliás, sucumbiram aos animais que eram brutais. Ninguém foi capaz de voltar atrás, pegar algum pertence para recordar a mente. Os ratos não foram condolentes.
Do outro lado do vilarejo na rua Oriente, paralela com a Ocidente, esquina com a Desejo. Ali havia festejo, dia de São Tejo. Um frade franciscano que passara a vida a se dar aos pobres, era um homem nobre. Cercado de pobres não era esnobe. Vivia a mendigar, a se castigar, a se mutilar, até que morreu e virou santo, com outros tantos.
Pois então, ali naquela esquina bem em sua quina, havia uma Igreja. Construída em homenagem ao Santo, para nos cobrir com o seu manto e nos livrar do espanto. Ali, existia um pároco que gostava do estilo barroco. Ele era meio roco, mas suas pregações eram dignas de aclamações, suas orações, comoviam multidões.
Bem, deixemos de lado estas considerações até para que este não fique de grandes proporções. Sendo assim, sem mais delongas, continuemos.
Ele saiu em desespero com a batina na mão, que situação. Pobre coitado, não bastou ser homem honrado, também não foi perdoado. Saiu a correr, com os ratos atrás.
Não demorou, nem mais um ficou. Todos saíram a correr e os ratos atrás.
Não se sabe ao certo o porquê do sucedido, o porquê do acontecido. Mas os ratos não deram explicação, não aceitaram argumentação, sequer interpelação.
Nisto acabou o meu café.
Virei-me para a garçonete para pedir outro café e ao olhar para a mesa ao lado, percebi que as velhinhas sumiram. Ao menos a minha febre havia passado e a conversa das velhas senhoras havia me agradado.
Por isto vos conto de muito bom grado.
Até para deixar o meu recado.
Meu muito obrigado.
Sinto-me honrado.