Pai e amante.
Escrevi ao vento, todo o silencio que precisei que de mim, viajasse rapidamente e apenas lá na frente, bem lá na frente, onde já se enxerga a distancia consumida pelos passos dados, voltasse tudo o que havia escrito antes e, agora, remoído pela reflexão, não me permitisse mais escrevê-lo de novo. É que, às vezes, a emoção vence os músculos da mão e a gente fala nas palavras escritas o que nosso coração queria apenas sentir guardado. Fazemos o que não nos é permitido fazê-lo.
Remoo a tristeza da palidez de certas rudes tempestades que aparecem vez em quando, como se quisessem molestar nossos momentos felizes. Chegam-me ansiosas, incongruentes agarradas, avassalada, no pó da estrada, as marcas das pegadas, destorcendo as rotas, desequilibrando o corpo. O coração fica contido a sentir o indesejável sendo desejado perigosamente.
Mas a gente cresce, evolui espiritualmente e aprende a distinguir os abraços fiéis, os sorrisos saudáveis. No passado, já enfrentei velhas e barulhentas tempestades de areia, ventos endemoninhados, paragens de extremas rudezas, largos caminhos cheios de espinhos entre as pedras dos abrolhos de mares salgados demais para os meus olhos. Se ainda me resta sentir o cheiro nauseoso do mal redondilhando à casa da memória, minha alma, agora forte e vívida, transforma tudo o que chega em mansos ventos – brisas transformadas – , que não me sufocam mais.
Ainda não me é finito o cansaço que me assolou mais fortemente ontem, quando me imaginei o rei do mundo, único dono dos sonhos que sonhei acordado antes de achar sequer o quarto onde devia deitar-me para o repouso a reflexão e o sono.
Meu amor era o teu amor de forma diferente; deliciosa brisa mansa, cheia do perfume de campo, gostoso de sentir-se no fim de tarde, quando apenas o cansaço do árduo trabalho diário nos permitia, sentados um ao lado do outro, falar um pouco de nós – tão pouquinho que o dia já se escurecia e nossa conversa acabava. Aí íamos correndo ao pecado dos outros, tão natural para nós dois sem o mundo por perto.
Lembro o velho sobrado onde morei – no planalto do engenho, quase em frente ao dos teus pais. Tu eras belíssima com tuas tranças bem apertadas, juntas em circulo, sem se achar delas, cabeça ou ponta. Comecei a admirar-te nesses dias, olhando apenas teus cabelos. Depois vi teus olhos pretos, fugidíos dos meus, medrosos como as ágeis andorinhas que cobriam os fios no fim das tardes de verão. Nosso amor ainda seria repatriado e eu nem podia sofrer; continuei a desejar-te minha, só minha, a viver entre os dois casarões dos engenhos. Teu destino estava traçado, teu lugar não me caberia junto, nosso amor ainda era apenas um belo conto de fadas.
Lembras o primeiro beijo que te dei? Minha mão direita não pôde ser lavada por toda aquela noite e o resto do dia seguinte. Imaginei que não poderia cruzar em nossas vidas qualquer dificuldade e que o labirinto de antes agora estava desfeito – havias me aceito como teu amado, quase amante.
Não te imaginei como mulher, como amante, como filha, mas apenas como um sonho demorado que se iniciava. Eu alimentava uma vontade profunda de ser teu – tu seres minha – de uma forma diferente, porém ainda mal definida dentro dos meus sentimentos. Nem sabia direito o que queria de ti, quem eras àquela altura dos fatos.
Era uma sexta-feira chuvosa quando tua mãe morreu. Sempre esperei enviuvar primeiro, porque, quando nos casamos, ela era mais velha que eu quatorze anos. Foi um escândalo. Teu tio Jorge não queria jamais que isso nos acontecesse. Mas quando nasceste – minha linda primogênita – , ele aquiesceu os ânimos e passou a falar comigo e com a irmã. Tua mãe ficou feliz; o jantar que ela deu para teu tio foi farto. Refeitas as amizades, restava-nos curtir teu crescimento, ensinar-te os primeiros passos, admirar-te.
Como a vida dá voltas complicadas, desestrutura o que é constituído socialmente, as convenções! Eu me lancei sobre a labareda da fogueira viva; queimei toda a família comigo, risquei o incomum de se ver, não prestei atenção à vida do outro lado dos meus sonhos.
Tu cresceste faceira. Aos nove anos já tinhas corpo de moça grande, preparada para o casamento, uma formosa menina com corpo de mulher. O casarão olhava para o outro. No maior deles apenas eu, tu a criadagem e os gordos morcegos bailarinos do finzinho de tarde. Foi quando comecei a sentir o mormaço do pecado vindo, pondo vozes aos meus ouvidos, encobrindo as regras, pedindo para que eu pecasse; quando eu te cobria com o mesmo cobertor, saltavam de mim múltiplas fagulhas obscenas que driblavam tua inocência para encontrar o teu corpo; e tu me abraçavas tão feliz e eu, loucamente apaixonado, desviava minha paternidade e jogava-me molhado às tuas costas quentes, cheirosas, como se o pecado entre nós pudesse ser alimentado naquele quarto, naquelas noites chuvosas e frias de inverno no engenho, sendo eu teu pai, tua mãe, teu amante...
-Nunca notei esse seu assedio, Arsênio.
-Mas eu nunca te permiti me ver como pai nessas horas – apenas como um amiguinho...; não te digo, nada me parecia definitivo, mas apenas começado. Gostava de observar-te com teus treze aninhos – época do meu primeiro bote – correndo em frente à casa grande. À noite duplicava teus treze,e os vinte e seis me serviam sob o lençol. Lá fora ninguém podia pensar qualquer maldade. Gostavas do que eu te presenteava. Nunca assisti à repulsa tua. Por isso nunca te deixei chamar-me de pai.
-Acostumei-me a esses tratos seus e não sabia mais quem eu era. Deixei que tudo continuasse do jeito que estava. Não posso negar que achava bom o recebido. A consumação de tudo foi que não aceitei e por isso gritei, corri de porta a fora e, quando tio Jorge correu para me acudir e perguntou-me acerca do acontecido – menti, única forma corajosa que encontrei dentro de mim para não lhe falar nossa verdade. O mundo cairia sobre nós e eu, sua cúmplice, trazia sobre os ombros muito peso. Eu me fiz de desentendida, respondi a ele com outra verdade.
-Hoje minha velhice contempla tua maturidade. Não para mais acompanhar teus passos, mas me alegro em ver que és como Esmeralda, fiel ao teu dono, solícita, guardiã, cuidadosa a zelar por teu pai, velho, amarelado, feito fruto de tão velha safra, lavoura que não mais se cuida em busca de frutos bons.
-Não sei quem sou, meu velho; estou no mesmo iniciozinho deste antigo labirinto. Desalmada, sinto que tenho algo como uma alma bonita, opressa dentro de mim. Se dissesse que conseguiria ser feliz longe de você estaria mentindo.
_Logo, logo estarás livre desse pesadelo. Meus anos de vida correram mais apressados que os teus. O pecado de antes pesa demais aos ombros. Sinto que minha via-crúcis me enterra na areia movediça de todo caminho que cruzo. Quando eu for embora, não
deixe que outros saibam o que fomos. Deixe que com o mundo fique a história de pai zeloso, da filha que abdicou de viver sua vida para zelar pela dele. Teu tio Jorge morreu e não soube. Mataria a mim se tivesse sabido um dia.
-Pai, segredo não há para três. A nega Zefa sabe tudo dentro dessa casa. Ela nos olha por baixo envergonhada como se não quisesse que soubéssemos que ela sabe muito de nós.
Papai morreu seis meses depois. Velaram-no como se dentro do féretro houvesse um santo. Meu choro foi de arrependimento. Doei todos os bens para a arquidiocese e quis envelhecer e esperar que a morte chegasse, nos confins de Minas Gerais, em um convento situado em um planalto que sempre enxergava nos meus pesadelos. Parecia que conhecia aquele lugar como a minha própria casa. Quando sonho com ele, ainda me chega um forte prazer na carne. Nem sei o que ele foi melhor: se pai ou se amante.