Julia e o Natal

Julia e o Natal

Seu nome era Julia, uma agregada da família, filha de uma cabocla moradora de uma fazenda distante, mas que conhecia o casal a quem deu a filha como afilhada e lhes entregou para que a criasse, fato comum nestas redondezas e naqueles tempos, ficou feliz, por assim garantir uma vida melhor para a filha.

Julia cresceu na rudeza da vida da roça, ajudava na cozinha e na lavoura, lavava roupas no riacho que passava ao lado da casa, esfregava aqueles andrajos cheios de remendos, roupas da família e de algum camarada que também era agregado, roupa toda lavada, esfregada a mão e para soltar a sujeira, tinha que ser batida na pedra e posta para coarar ao sol, trabalho duro, depois ia para a cozinha fazer qualquer coisa que pudesse para ajudar, o que era sua obrigação.

Vestia sempre roupa escura, nada de saia e blusa, apenas vestidos feitos por alguma costureira das redondezas, com péssimo corte e arremate, pés sempre descalços, cabelos tratados com babosa, facilitava a tarefa de pentear e lhes dava certo brilho e os unia, estavam sempre presos por lenços, ou amarrado por um nó na parte posterior acima da nuca, em (pitote). Vez em quando, aos domingos, fazia uma trança, isto quando a casa não se enchia de parentes que vinham para o almoço, lhe tirando o seu descanso, e pior, fazendo do domingo um dia mais cansativo que os dias normais de semana, mas ela não reclamava, há anos que era assim.

Fora disto, os domingos, eram propícios para uma outra atividade muito necessária, a catação,atividade que era dedicada a eliminação de um incomodo chamado piolho, com este objetivo, sentava-se ao sol no terreiro, cabeça envolta por um grande pano branco que não deixava ver um só fio de cabelo, previamente encharcado com querosene para estontear os piolhos, facilitando sua caçada, que era feita

frequentemente, e era tão normal , quanto almoçar ou dormir, natural.

Quando os bichos estavam agitados, soltava se os cabelos, repartidos em duas partes, uma para frente sobre o rosto, que fixava se sobre as pernas cobertas por um tecido branco, e a outra sobre as costas. Daí começava a longa tarefa de passar exaustivamente o pente fino, desde a raiz dos cabelos, raspando rente ao coro cabeludo, até as pontas, parando sobre o pano que ia ficando coberto de “pontinhos pretos”.

Esta tarefa era sempre executada à quatro mãos e olhos, era preciso contar com a ajuda de alguma amiga ou mesmo parente, que cuidasse da parte alta e traseira da cabeça, onde Julia não podia ver, a amiga, ao iniciar cada passagem do pente, apertava o bem rente, e puxava de forma continua , arrancando não só os bichos, mas também contorções e gemidos, que punham lagrimas nos grandes olhos da Cabocla.

_ Tá doendo?

_ Não, mentia

_ Pode continuar assim mesmo.

_ Tá bom, respondeu a outra.

E assim foi até não enxergar mais vestígios dos bichinhos , dando por encerrada a empreitada.

Esta era a rotina dos domingos, quando as moças se reuniam, ou mesmo as mães e aos seus filhos, entre uma passada do pente e outra, vertiam as conversas, alguns segredos e sempre muitas gargalhadas.

Fora estas ocasiões ela estava sempre acabrunhada, não sorria, pois vivia sempre com o rosto inchado, seus dentes, todos cariados e escuros pela falta do esmalte, já todo corroído, nunca visitou um dentista, ou melhor, nunca fora visitada por um, já que não saia daquele fundão para nada. Ficava sabendo de coisas da cidade quando as filhas de alguma visita por ali passando, floreavam lhe estórias que a tiravam do estado letárgico que se encontrava, experimentando um tremor naquele corpo rude, e seus olhos cresciam e brilhavam, denunciando seu entusiasmo, que passado aquele momento se recolhia ao seu mutismo.

Estava prestes o Natal, e com isto, a casa ficava repleta, chegavam os filhos e netos de seus padrinhos, e assim ela se entretinha com os causos de Papai Noel, e dos presentes trazidos, que fariam a alegria das crianças.

Na semana do Natal, ela não dormira direito, não de ansiedade, mas pela dor que incomodou a noite inteira, era uma das presas que cismou de reinar “justo agora”? “Reclamou em silencio”, enxaguou com salmoura e nada, pós lasca de fumo sobre o dente , a dor só piorava, fez todos os curativos conhecidos sem resultado, o rosto cada vez mais inchado e dolorido, amarrou uma compressa de fubá e sal, que nada, parecia só piorar aquela dor lancinante , e Julia agora gemia e chorava, andava de um lado a outro já em desespero.

Os dias foram passando e a pobre criatura no escuro do quarto, gemendo, sem dormir a 3 dias, era surpreendida por um breve cochilo, que lhe trazia breve momento de descanso, e num deles, em desvario, chegou a ver o rosto do falado Papai Noel, que lhe sorria com uns dentes tão brancos como sua barba, uma brancura que ela sonhava para os lençóis lavados e alvejados com anil, ele foi se aproximando a ponto de sua barba tocar seu rosto, quando de sobressalto, acordou , e a dor ali estava, a lhe tirar a razão; estava esperançosa que com a infecção aumentando , viesse a supurar , trazendo lhe o alivio.

Por aquelas bandas, passava de vez em quando uns mascates que traziam desde canivetes até conchas de alumínio, pentes de osso, espelhinhos ovais com fotos de moças na parte traseira para alegria dos rapazes, e tantos outros tarecos que pudessem ter utilidades e assim serem comprados.

Ocorreu que um destes viajantes resolveu já num final de rota, passar por ali e aproveitando a época, trazia nas tralhas alguns brinquedos simples e baratos que pudessem ser comprados por aquelas famílias da região, sempre muito pobres; Ocorre que era comum alguns destes viajantes fazerem trabalhos de protéticos e para isto faziam algumas extrações, para poderem vender suas próteses, e eram a salvação dos povos do interior, que não tinham acesso a tratamento dentário, e muito menos tinham o habito de higiene bucal ( Escovação ), esta a maior causa dos sofrimentos com dores de dente, tão comum em regiões interioranas em passado não muito remoto.

Um desses personagens, se “chamava “ Seu “Meireles”, era um desses “Tiradentes”, e foi justamente ele quem chegou já num final de tarde na casa onde Julia morava, e a encontrou em desespero, puxou conversa para descontraí-la, e só tinha como resposta grunhidos como, hunn, hum, hãm, hãm , hum; de uma rápida olhada, ele percebeu a situação e penalizado com o estado da moça, pegou de seus pertences um boticão e sem muito rodeio, e sem anestesia, ( pois naquele caso não faria efeito) pôs se à suas costas, prendeu lhe a cabeça com uma mão, puxando firme contra seu corpo e com a outra apertou firme o aparelho sobre o dente, com a sua prática, bastou uns puxões e torções , e La estava ele, o vilão, o motivo de tanta dor, bem a sua frente, antes mesmo de se ouvir o urro de dor de Julia, mas o ultimo que aquele dente lhe causaria.

Após tomar alguns comprimidos, a dor foi amainando e Julia conseguiu dormir aliviada, seu rosto desinchou, e mesmo com outros dentes precisando de cuidados, que ela escondia com a mão quando falava ou sentia vontade de rir, ela teve seu primeiro presente de Natal, um sorriso e uma alegria que nunca tinha experimentado.

Meireles, nas outras viagens, foi tratando de Julia, extraiu todos seus dentes e lhe colocou uma dentadura, que depois de se adaptar, fazia questão de rir por qualquer motivo que fosse, sorria sorrisos alvos, sem cobrir a boca, deixava-se ver assim, escancarada, com aqueles dentes que ela viu em sonho, no sorriso de Papai Noel.

Um dia frente ao espelho, experimentando maneiras diferentes de sorrir, parou com ar pensativa e se perguntou com o cenho franzido.

– “ Será que Papai Noel também usa dentadura,?

Trejeitou os ombros e pensou “não importa “.

Fez um ar de riso, e foi para a cozinha, dar sequencia a sua rotina.

Obs. “Seu Meireles” e Julia são personagens verdadeiros.

Araçoiaba da Serra, Natal de 2012.

Urano Leite de Sousa