A CARTEIRA VAZIA
As vozes se entrecruzam descompassadas. Mulheres puxam os meninos; aceleram para vencerem o tempo, pois o sol esquenta. Rapazes descem a ladeira calçamentada, rumam para as bancas de mercadorias piratas. Duas jovens caminham próximo ao fio de pedra. Os shorts vibram na escaldante manhã, enquanto os assobios ressoam, como estribilho de uma canção. A carroça que passa promete o sustento da família, o feijão na carga daria bom lucro. O senhor chicoteia o burro, que avança com dificuldade.
-Traz aí outra lourinha, Teté. A voz de Chico Louro ribomba na manhã de sábado.
O bar fica próximo aos currais dos animais. As mesas são espalhadas, sob as árvores. Das cidades vizinhas, chegam caminhões com cavalos, bois, cabras e carneiros. Também galinhas e preás.
O cheiro de urina impera por aquelas bandas.
Chico Louro morde a carne no espeto, a mancheia de farofa na boca.
-Eu não disse que criar estes animais não tem futuro. Foi-se o tempo.
Na cadeira à frente, Zé Orelha concorda de cabeça, sem ânimo para a conversa.
-Só querem pechincha. Num sabem o trabalho que dá. E os gasto. Se a gente não for vivo, o gado da gente vai embora e a carteira, vazia. Retira a carteira do bolso e joga sobre a mesa. A carteira, vazia. Repetiu apontando o objeto de couro sobre a mesa.
À frente, Zé Orelha concorda de cabeça, sem ânimo para a conversa.
O dono do bar traz mais dois espetos e outra bacia de farofa.
Chico Louro morde a carne. A mancheia de farofa na boca.
-São tudo ladrão. Querem comprar a preço de banana. Comigo, não. Sou vivo. Num me pegam na lábia, não. Meu gado tem qualidade. Tem que ter preço.
Zé Orelha concorda de cabeça.
-É, a bichinha gelada desce rápido. Vou já inverter água, aquilo que a natureza nos ordena a fazer.
Zé Orelha concorda.
Chico Louro desce para os lados do banheiro.
No bar, as vozes se entrecruzam descompassadas. Na mesa, a inquietude se revela. A carne comida, a cerveja bebida, objetos mais leves.
-Sabe Zé, desde o verão passado eu perdi o interesse pelo gado. A gente trabalha igual burro de carga e num tem retorno. Era o Chico Louro que voltara. Traz aí outra lourinha, Teté.
O sol avança em horas.
Zé Orelha se levanta. Despede-se sem ânimo, e se vai.
-Vá com Deus. Eu fico aqui na minha lourinha.
Chico Louro morde a carne no espeto, a mancheia de farofa na boca.
- Gente boa, este Zé Orelha. Desses aqui da feira, é o que simpatizo. Falou baixo, consigo.
O sol avança em horas.
- Teté, a conta. Também preciso ir. A feira já deu por hoje. Meu gado foi vendido.
O dono do bar se aproxima. Chico Louro, de carteira na mão, não compreende o que os olhos mostram. A carne comida, a cerveja bebida, objetos mais leves.
-Se a gente não for vivo, o gado da gente vai embora e a carteira, vazia.
Joga o objeto de couro sobre a mesa; a carteira vazia.