Feliz Natal , Charlie Parker

- Feliz Natal e boa noite , meu pai .

Roberto foi o último a sair . Aquela frase , repetida já há tantos anos , continuava sem exprimir absolutamente nada .Mas os anos vão passando, levando tudo : os vivos , os mortos e os morto – vivos , de cambulhada .Eis – me sozinho . E inútil . Um velho alquebrado numa cadeira de rodas , uma mistura patética de artrite e diabetes a infernizar meus sobreviventes , aqueles a quem nunca amei de verdade , porque nunca permitiram e nem fiz a menor questão de ser querido. Manobro a cadeira de rodas na

entrada do prédio , a tempo de evitar o esbarrão do novo vizinho , sobraçando uns discos e uma garrafa de whisky . Desculpa – se pela pressa ; no sorriso simpático tresandando a álcool , deseja – me um Feliz Natal , em cortesia improvisada.

Mas nem sempre foi assim . No tempo das vacas gordas ,toquei nas melhores bandas , elogiado até na Down Beat ! Muita grana no bolso disputando espaço com os bilhetinhos do mulherio . Dagmar sabia tudo , mas fazia-se de otária , porque em casa , tudo do bom e do melhor pra negrada toda , até aqueles vampiros banguelas dos pais dela , sempre uma mordidinha : mil daqui, quinhentos dali . E a mídia ? Babando e endeusando : o grande Batista , a fera do sax , músico completo ,encarando tudo , bossa nova , jazz ,bebop , cool , o diabo a quatro mais que chamassem de jazz .

Claro, enchia a cara e puxava uma erva ,mas todos faziam .E hoje? Ah ! Hoje eu seria um frade carmelita ,não descalço, pois precisaria dos dois pés sem sapatos e cadê pé ? A doença entregou á faca dos médicos .Horrível , a sensação de morto – vivo que a gangrena dá : apodrecer em vida , só faltando os urubus de verdade me beliscarem .

Então , fui ficando sozinho em lentas e dolorosas parcelas : saí de casa, a saúde piorou , cresceram os filhos em ódio e em estatura , os colegas sumindo , aparece a artrite que me aleijou rapidinho as mãos e a merda está feita .Olha que hoje é dia de Natal .Ontem, na véspera , só eu e dona Vandira , a empregada .Trocamos um brinde de cidra comprada com o dinheiro dela , servido em copo de requeijão . Lembro dos colegas de banda , as fotos na parede já meio amareladas , mortos ou esquecidos o que dá no mesmo. Uma manhã e tarde inteiras de recordação , do que deu em merda.

Lembro do tempo de desquitado , dando murro em ponta de faca , a doença cobrando as promissórias vencidas . Já amputado , pedi humilhado para voltar para casa . Dagmar concordou , contra tudo e todos .De arrimo a escorado , aqui estou . Feliz Natal, Batista cotozinho , que Satanás marcou para não perder de vista .

As fotos na parede , são cusparadas do destino não na minha cara , mas na minha alma .O corpo se defende , mas a alma não , acolhe e recebe tudo . E a solidão dói tudo que tem num dia assim , porque hoje percebi quanto ódio de mim é abafado pelos meus filhos, três visitas, três caras de ódio enrustido e engasgado . Sozinho de repente.A TV ligada , a empregada de folga , eu aqui, rangendo os dentes de compaixão e ódio a mim mesmo. Pra mim , basta .

Lacro com jornal as brechas das portas e janelas , fecho a porta da cozinha , abro a válvula do gás , lentamente . Serei encontrado bem rosadinho de tanto gás e espero , todo cagado também , dando trabalho extra aqueles miseráveis.Acomodo a cadeira de rodas ao lado da mesa , fico na maçaranduba do tempo , olhando o relógio da parede .

O apartamento vizinho, um barulho só .Que surpresa terão amanhã ! Começo a sentir o cheiro do gás cada vez mais forte, subindo , espalhando-se e tomando tudo . Escrevo: lutei todas as lutas, pra mim basta e coloco o papel encima da mesa. As coisas começam a parecer escuras e distantes.

A vizinhança , na dolce vita ; alguém começa a curtir um som . E que som ! Charlie Parker com Dizzie Gillespie em Night in Tunisia ! È preciso ter parte com Deus ou com o Diabo para tocar assim . O velho coração acelera , o corpo esquenta numa febre estranha e feliz . Parker vai em frente , fazendo esplêndidas misérias naquele sax alto ,

Gillespie não se faz de rogado e por um momento me fazem pensar que talvez exista algo além dessa merda toda em que passamos a vida á patinar .

Começo a chorar de repente, de emoção besta , de medo da vida , da morte, de mim mesmo , de tudo , enfim .Empurro a cadeira até o fogão e desligo o gás . Feliz Natal , Charlie Parker !

andre albuquerque
Enviado por andre albuquerque em 15/12/2012
Código do texto: T4036662
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