SEM SONHOS

Sem sonhos.

Lavou meticulosamente as mãos, dedo por dedo, dando atenção especial ao espaço entre eles. Esfregou mais uma vez as palmas e o dorso, para depois olhá-las contra a luz refletida no espelho à sua frente. Sorriu satisfeita e foi para a sala. Pensou no que faria em seguida, já que era sábado e não havia planejado nada, nem recebido qualquer convite. Lembrar isso deixou-a um pouco triste, pois sabia que todos estariam juntos em algum bar festejando a promoção da Marcinha. Ela tinha ouvido alguma coisa no escritório, mas preferiu não participar da conversa e pelo visto eles também tinham preferido não convidá-la. Tudo bem. Na verdade já estava acostumada a ser relegada, raras vezes eles a chamavam. Ela sabia, e sabia que eles sabiam, que ela era diferente deles. Em algum momento, no passado, isso fora motivo de sofrimento, não mais ... ou melhor, não tanto mais ... aos poucos aprendeu a viver/conviver consigo mesma. Falava com seu gato, um siamês branco e discretíssimo, além de muito cordato, pois a ouvia atentamente e de quando em quando miava em aprovação. Voltou ao banheiro e repetiu todo o ritual: mãos, dedos, entre dedos, palmas, dorso. Precisava pensar em alguma coisa. Félix não ajudou muito, pois embora concordasse que ela devia sair (miou quando ela lhe perguntou) não soube lhe dizer para onde ir, além do que, certamente a preferia por perto, lhe fazendo companhia. Abriu um livro ao acaso e só depois percebeu que tratava de como manter um relacionamento. Ironia! Que relacionamento? Quando teve um relacionamento com alguém? Fosse amoroso ou mesmo amizade? Não conseguia lembrar ...lembrava sim das tantas vezes que por medo de ser rejeitada, rejeitara antes. A leitura não lhe pareceu agradável, nem adequada para o momento. Guardou o livro e após um bom tempo em devaneios, foi lavar as mãos. Aproveitou para tomar um banho relaxante e enquanto preparava a banheira, cantarolou tentando afastar alguns pensamentos invasores ...aliás, sempre os mesmos... por que estava só, por que não conseguia ter uma amiga, um namorado...por que nunca tivera filhos ... por que havia se afastado da família ...por que afinal lhe parecia que nunca tivera de fato alguém que lhe amasse em toda a vida ....

Depois do longo banho e de muitas lágrimas, enrolou-se no velho e macio roupão rosa sem graça e olhando pela janela percebeu que já era noite. Apaziguada, resolveu ficar em casa e curtir sua vida sem sonhos.

Ana Janete
Enviado por Ana Janete em 28/11/2012
Código do texto: T4008930
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