A Descoberta

George Luiz – A Descoberta

Entardecia na velha chácara do Padre Augusto. O velho sacerdote estivera lendo. Seus olhos já não eram mesmo grande coisa, pensava ele.Tinha estado no oculista havia menos de um ano e sentia que já era preciso mudar as lentes para enxergar melhor as letras. O ócio não era nada bom para um padre, ele refletia. A falta do que fazer leva a gente a pensar demais.Cinco e meia, o sol já estava começando a se por.

Padre Augusto resolveu dar uma boa caminhada antes do lanche. Não janta-va. Preferia comer algumas frutas leves e tomar um bom chá quente. Saiu da casa e desceu pela trilha que conduzia ao lago.De repente, as lembranças começaram a invadir sua cabeça,acabando por remete-lo a um passado distante. Por onde andaria sua Irene, a grande paixão de sua vida? Por que se deixara envolver por ela na cidadezinha do interior ? Chegara a Conceição das Palmas tão entusiasmado. Pela primeira vez ia ter sua própria igreja, sua paróquia. Nunca sentira tão intensamente sua vocação mística, seu destino de fazer o bem.

Não tinha idéia do que eram as pressões de uma comunidade sobre um representante da igreja num lugar pequeno assim. Caprichara no seu primeiro sermão dominical na esperança de conquistar a simpatia dos moradores mais antigos sem perder o interesse dos mais jovens. Misturara conservadorismo com um pouquinho de modernidade. Era preciso encontrar a fórmula certa,segurar aquela gente pela garganta e mostrar-lhes o poder da fé. Estava ali para guia-los para a salvação eterna.

Seu primeiro choque foi perceber o ciúme e a rivalidade entre as beatas. Disputavam sua atenção quase como numa competição particular.As reuniões para definir os trabalhos beneficentes, as procissões tradicionais, as necessida-des da creche, tudo era razão de disputas pessoais onde as pequenas vitórias dessa ou daquela participante eram vistas pelas outras com disfarçado rancor.

A alegria de estar a frente de uma pequena comunidade católica amenizava as coisas. Apesar dos pesares, Augusto era um homem feliz.

Irene era uma jovem viúva com dois filhos ainda pequenos. O marido, fazendeiro bem sucedido, a deixara em ótima situação. Com a fazenda para dirigir e as crianças para criar e educar, pouco tempo lhe sobrava para outras atividades. Era vista ocasionalmente nos raros eventos sociais da cidadezinha. Nunca se recusara a contribuir nas campanhas da comunidade ou da igreja. Mas não era uma freqüentadora assídua das missas , mesmo as dominicais. Um dia, era o batizado do filho de uma amiga, Irene conheceu o padre Augusto. Despertou seu interesse a fisionomia ainda jovem do sacerdote. Aquele padre de traços finos e olhos expressivos, parecia esconder sob a batina um corpo vigoroso embora magro. A atração física foi imediata. Aquelas mãos espirituais que eram dedicadas ao serviço divino, exibiam em seus gestos uma potencialidade erótica indisfarçável. Irene achou que deveria dar mais atenção à pequena igreja local.

Tinha sido uma mulher bem realizada sexualmente. Seu marido a satisfazia na cama com regularidade e entusiasmo. Era um casamento feliz. Com a viuvez recolhera sua sensualidade , dedicara-se aos filhos e à fazenda. Tratava com divertida indiferença as poucas tentativas dos homens, solteiros ou não, que a cobiçavam. Achava que não havia um macho realmente interessante para reacender seu desejo. Sendo muito bonita e razoavelmente refinada, seu padrão de homem era outro. Ivo, seu marido, fora um homem muito atraente e, sendo fazendeiro, formara-se em agronomia na capital. Tinha estado na Europa como prêmio de seus pais por sua formatura e viajara com ela a Nova Iorque na lua de mel. Não, não havia em Conceição das Palmas e cercanias alguém que pudesse despertar seu interesse. E agora surgia esse padre pouco mais velho que ela e tão atraente. Por que tinha que ser um padre? A tentação de fazer cair o religioso em gostoso pecado era muito forte.

Os meses passavam com monótona regularidade. As beatas continuavam a disputa pelas realizações sociais da paróquia. Ficaram surpresas pelo interesse, agora mais acentuado, de Irene pela igreja. Mas não se preocuparam com sua atitude. Afinal,ela vivia na fazenda, pouco vinha a cidade, era uma figura relativamente distante.

A feira agropecuária chegara em maio como em todos os anos. Era o auge das atividades sociais da cidade, um evento tradicional e festivo. Pela primeira vez depois da morte do marido, Irene participou da festa. Encarregou-se pessoalmente da barraca que apresentava os produtos de sua fazenda, auxiliada por três ou quatro de seus empregados. Fazia frio, mas ela usava sobre a saia escocesa, uma blusa de lã generosamente decotada. Os olhares de vários homens a devoravam mais ou menos discretamente, algumas esposas olhavam-na com mal disfarçada inveja e uma ponta de revolta. Acompanhando o prefeito e o presidente da câmara de vereadores padre Augusto chegou a frente da barraca. Irene apertou a mão do prefeito , saudou o presidente da câmara com formalismo e inesperadamente pegou a mão do sacerdote para beija-la. O gesto foi repentino ele não teve como evita-lo. Inclinando-se para depositar seu beijo no dorso da mão de Augusto, Irene revelou-lhe, teria sido de propósito? uma boa porção da beleza de seus seios morenos. Mesmo um pouco constrangido, o padre Augusto descobriu, num momento mágico que ainda era um homem.

A partir daí, a realização dos desejos de Irene era uma questão de tempo. Ela foi implacável em sua campanha amorosa. Tinha que conquistar o homem escudado em sua profissão celibatária. A idéia de faze-lo abandonar, derrotado pelo amor e o desejo, até sua profissão, era uma motivação maior para o cerco suave e discreto que Irene fazia ao sacerdote. Como uma ávida e poderosa serpente, ela foi envolvendo lenta mas irreversivelmente Augusto em seus anéis quentes e macios. E uma noite, em que ela retivera o padre em sua casa para combinar uma doação para a reforma do telhado da igreja, conseguiu seu intento.

Entre os alvos lençóis da cama de casal, o corpo sensual de Irene, os seios delicados e erguidos, a divina curva de suas ancas, sua bunda empinada , as coxas e pernas belíssimas, o ventre enfim, liso e coroado pelo pequeno triangulo de pelos negros venceu a inútil resistência de Augusto. Embolados sobre o leito eles se entregaram gulosamente a um delicioso ritual bem diferente daquele que o padre exercia diariamente frente ao seu altar. Como tantas vezes desde que o mundo é mundo, a luxuria triunfara sobre a castidade.

Tinha sido uma paixão alucinante aquela. Durante meses a fio Augusto, entregue a esse amor proibido lutou contra a persuasiva insistência de Irene para que abandonasse o sacerdócio e vivesse feliz e sexualmente realizado com ela, para que se casassem. O acaso interveio para solucionar o problema. Um sacerdote mais idoso adoecera e o bispo da região chamou Augusto e lhe propôs ceder sua pequena paróquia ao padre enfermo e assumir a igreja bem mais trabalhosa de uma cidade grande a cento e tantos quilômetros de Conceição das Palmas. Augusto concordou aliviado com os desígnios do bispo. A distancia, o tempo, acabaram por afastar os dois amantes. Um dia Irene telefonou a Augusto para dizer-lhe que ia se casar com um fazendeiro da região.

Todas essas recordações vinham à lembrança do padre Augusto enquanto caminhava pela velha chácara, herdada com a morte de sua madrinha. Chegou a beira do pequeno lago. Os últimos raios de sol douravam as folhas das árvores, brincavam caprichosamente com os ramos, desenhavam sombras inquietas que a suave brisa fazia oscilar sobre a relva. Andando um pouco mais o sacerdote parou ao ouvir vozes. O cão perdigueiro que o acompanhava farejou o ar frio. Era uma curva do caminho, algumas moitas escondiam parcialmente o restante dela. E então, forçando um pouco sua visão, descobriu a origem das vozes. Um casal muito jovem se beijava enlaçado junto a margem do lago, entregava-se a algumas caricias mais ousadas. O velho padre preparou-se para fazer meia volta. Não se sentia no direito de interferir com aquela cena amorosa. Mas alguma coisa o deteve. Aquela luz, a transição da tarde para o anoitecer, tinham alguma coisa de quase sobrenatural. O rapaz e a moça se despiram, iam se amar. E o padre Augusto compreendeu num relance que o que estava vendo não era um ato sexual qualquer. Naquela atmosfera que a luminosidade tornava meio irreal, aqueles dois jovens não eram apenas dois roceiros. Eram o primeiro homem e a primeira mulher que Deus criara para povoar o mundo. Padre Augusto susteve a respiração,ia assistir o milagre do primeiro ato de amor no paraíso. Observou a cena por algum tempo, e por fim voltou-se discretamente para regressar a sua casa seguido por seu cão. A vida, a natureza dos seres e das coisas era perfeita. Aquela noite ao rezar antes de deitar-se, padre Augusto agradeceu ao Senhor pela infinita magnitude de sua obra.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 26/02/2007
Código do texto: T393902