do livro Poeira Vermelha de Wanderley Marques (E-books)
LUZIA QUITÉRIA - FIBRA DE MULHER
De: Wanderley da Silva Marques
Capítulo I
Havia um grilo oculto ali perto regendo sua melodia quizilenta: Hora curta, hora demorada, naquele instante em que nuvens vinham cavalgando nas asas do zéfiro a se instalarem pelos céus do sertão. As estrelas rapidamente foram engolidas, ocultadas, como a serem cobertas por uma grande toalha negra em todas as direções. Nestas horas, elas eram apagadas velozmente. Contudo! O mestre estridor continuava sua serenata noite afora adentrando a madrugada. Um trovão explodiu ali próximo para outros o precederem nos caminhos da providência, alvissarando a caboclada sertaneja, sempre esperançosa de um inverno farto e vigoroso que este estava a chegar. A dança dos pingos de água começou tímida; no espaço de um vai-e-vem: engrossaram, quedando com força pelas terras do sertão surrado, fazendo aquietar ao maestro ortóptero. Que certamente agora, se ocultara, protegendo-se do temporal. Algumas horas depois, alta madrugada, a chuva continuava a cair castigando o chão batido, fazendo a água correr abrindo sulcos na terra, revitalizando velhos córregos. Moldando e desenhando um novo cenário nas barreiras do velho rio não tão distante daquele lugar, que com o recebimento do aguaceiro descia caudaloso em gigantesca cheia a provocar um som macio, agradável de escutar.
O repicar dos pingos de água nas telhas da pequena casa produziam um som forte, ininterrupto. As paredes da tapera sofriam do lado em que à chuva vinha, desmanchando-se o reboco a ser levado pela força da água, deixando as varas cruzadas na armação da tapera ficar a mostra. Logo, alguns buracos surgiram deixando transparecer o interior da rústica vivenda; aonde uma rapariga corria apressada com pedaços de estopa para enfiar nas brechas da parede, numa luta incessante, já que quando tapava um, logo outro surgia, fazendo-a resmungar desesperada pela luta em vão. Na outra parte da casa, em posição contrária a chuva, havia uma velha deitada sobre um velhíssimo colchão de palhas, fazendo enormes caretas de dores sentidas no estomago; já que com força, apertava a barriga buscando amenizar seus suplícios. Só estas duas estavam em casa naquele momento, distante do vizinho mais próximo há umas dezessete léguas. O homem da casa cedo da tarde havia selado um burro e partido para a vila de balanços há setenta quilômetros na direção sul, em busca de um transporte para a remoção de Celidônea, que pelas crises de dores quando estas começaram, não agüentou se quer ficar de pé, enquanto mais pegar uma garupa. As dores não diminuíam e como a chuva crescente a engrossar, propagava-se a dominar o corpo da agricultora fazendo-a entrar em convulsão sobre o surrado colchão. Num espasmo de agonia reuniu todas as suas forças restantes e conseguiu sentar-se a bordo do colchão. Lançando um olhar para a porta aonde uma lamparina fadada pendia apregoada ao caixilho, gritou pela moçoila.
- Quitéria minha filha!
A explosão de um trovão impediu a rapariga de ouvir a mãe chamar-lhe pelo nome.
- Quitéria!
A segunda chamada saiu fraca, acompanhada de uma careta de dor. Porém desta vez: Luzia Quitéria, mesmo com os sons dos pingos da água repicando nas telhas, ouviu sua mãe e assim correu de volta ao quarto onde sua genitora procurava ficar de pé. Chegou a tempo de ampará-la, evitando-a de quedar.
“Onde estaria o pai?” – Pensou – “Teria chegado à vila? Ô meu Deus e este tempo!”.
O grito da doente misturou-se ao som do trovão ribombado no espaço a repercutir na audição da menina. Esbugalhando os olhos, a mulher estremeceu nos braços da filha deixando seu corpo esmorecer a fugir sua vida.
- Ou não! Agüenta mais um pouco mãe. O pai deve estar chegando! – Exclamou.
A palidez expandiu-se rapidamente pela face da mulher e uma frieza repentina tomou conta do corpo da enferma, arreliando Luzia Quitéria, que não sabia o que fazer abraçada a mãe ao pé da cama. O braço de Celidônea que ficara entrelaçado no pescoço da filha deslizou sem forças a ficar dependurado, inerte, fazendo aqui, Quitéria sentir que sua mãe estava irremediavelmente morta. Lá fora: os pingos de água no dançar da chuva foram definhando, definhando, até que cessaram de vez; as nuvens se espalharam deixando surgir às estrelas acompanhadas da lua caminhando para se ocultar. Somente ouvia-se agora, o barulho suave das águas correndo, e, aquela velha conhecida serenata do maestro grilo, além de um vento aromatizado do clima vigente na região. Luzia Quitéria, porém nada ouvia, abraçada a mãe fazia forças puxando-a de encontro ao seu peito num ato de dor e desespero, soluçando entre gemidos cortados a palavra “mãe”.
Na vila, distante daquele cenário, Genuíno Paudalho buscava a casa de um velho conhecido, Joaquim Pajeú, o possuidor do único automóvel Ford, um caminhão de boleia dupla, de madeira, existente por aquelas brenhas. Mas, para sua infelicidade, o homem havia viajado a negócios. Consternado, se viu obrigado a retornar sozinho sem o socorro que viera buscar. O médico, última esperança, só era acessível na cidade grande, bem distante deles e da vila. Só restava-lhe agora esperar pela vontade de Deus, como de outras vezes. Já o dia amanhecido, passou no empório, comprou um litro de aguardente e regressou a todo galope, preocupado com a consorte, esperançoso de que esta fosse só mais uma crise como as de antes, superada por sua companheira. Antes de chegar ao rio, já perto de casa havia secado o litro entrando num estado de embriaguez muito alta. Com muito esforço, conseguiu vencer ao lamaçal e atravessou as águas que corriam a cada instante aumentando mais e mais o seu volume. O sol campeava a meia altura quando chegou a sua residência. Ali não avistou Luzia Quitéria, Celidônea, encontrou-a deitada na cama. Ébrio, não desconfiou de nada, achou que a mulher vencera mais uma crise e agora dormia se recompondo da noite em claro. Olhando para a mulher puxou um surrado lençol de um baú ao pé da cama e cobriu a esposa deixando-a sossegada. Dali foi até a cozinha lavar os pés que estavam enlameados. Lá, despiu-se da camisa com dificuldades, arregaçou as pernas da calça e sustentando uma terrina, foi até o pote, aonde com um litro encheu o recipiente. Voltando até a mesa, puxou uma cadeira, sentou-se à vontade e colocou o objeto no chão mergulhando os pés em seguida.
Quitéria estava escorada em um pé de cajarana no terreiro da casa, olhando para o céu a meditar sobre o seu destino naquele momento.
“Talvez tenha sido melhor assim. Mainha sofreu muito nesta vida, agora estava livre de tudo e de todos” - Pensou – Mais o que seria dela agora? Sem sua protetora na companhia do padrasto que tinha como pai, afinal ele a criara desde novinha. Preso a estes pensamentos não sentiu Genuíno se aproximar.
- Luzia, já acordada! Por que não ta dormindo como sua mãe?
Ela virou-se, olhando-o de frente, ao perceber seu estado etílico, nada respondeu. Assim, caminhou para entrar em casa sem querer puxar conversa, as lagrimas ainda afloravam em seu rosto jovial. Ao passar perto do homem, este a segurou pelo braço.
- Escute aqui moleca! Ta mouca? Não me ouviu falar?
- Solte-me painho, ta me machucando.
Pediu esperando a razão fazer com que ele percebesse a desgraça que havia pairado naquela casa. Cansado da viagem, bêbado como nunca antes estivera na frente da moça, num ato impensado, Paudalho desceu a mão aberta sobre o rosto da menina Quitéria derrubando-a no terreno molhado com uma bofetada.
- Isto é jeito de falar com seu pai, cabrocha – Justificou seu ato a si - Ao cair, Luzia que completara dezesseis anos e se punha mulher com seu corpo desenvolvido, belo e escultural, bateu a cabeça na raiz da árvore que estivera escorada, ficando desacordada. Ela tinha os cabelos longos pendendo até a linha da cintura, possuía olhos grandes, verdes, de elevada estatura, cintura de “pilão” as pernas grossas e bem torneadas, rosto belíssimo, lábios grossos carnudos arroxeados, dona de uma beleza impar pra aquelas bandas. Diziam que não existia mulher mais linda no sertão de Catingueira. Ao cair ficou de pernas entreabertas a mostrar sua intimidade, já que estava usando um vestido curto de chita, ganho quando completara treze anos, e com o desenvolvimento do seu corpo, havia ficado meio curto. A imagem daquele corpo no solo naquela posição, a cachaça ingerida e uma enxurrada de maus pensamentos foram o suficiente para Genuíno Paudalho perder a razão; atirando-se sobre a quedada rasgou-lhe as vestes. Violentando-a, saciou seus sádicos desejos.
O sol estava a pino, queimando o rosto de Luzia quando ela recobrou os sentidos, primeiro sentiu uma forte dor de cabeça e compreendeu ser da queda sofrida. Foi levantar-se e sentiu que algo bem mais terrível tinha lhe ocorrido. Sentou-se juntado as pernas estendidas no solo para perceber o sangue misturado com lama e com o sêmen do homem a manchar-lhe as coxas. Chorou tristemente, toda desgraça da vida caíra sobre ela numa velocidade impressionante de tempo. “A perda da mãe e a violação sofrida pelo meio pai” Permaneceu sentada, sem vontade de levantar-se, segurando os farrapos da veste na altura dos seios, cobrindo-os com uma das mãos. Estava sozinha, não tinha ninguém, não tinha para onde ir e tão pouco poderia ficar naquele lugar. A justiça naquele sertão machista de majores e coronéis inexistia só lhe restando resignar-se ao seu destino cruel aceitando a pesada carga, ou...
Reunindo todas as forças restantes ficou de pé e caminhou para entrar em casa, foi quando o mestre grilo liberou uma nova toada e da mata um pouco a frente outros sons iguais, eclodiram em estridores; até o som do gorjear de alguns pássaros chegaram distante aos ouvidos da rapariga. Adentrou no recinto e pôde ver sua mãe estendida ao longo da cama, na mesma posição que deixara na madrugada passada, todavia ela estava coberta. Celidônea jazia alheia às misérias que sucederam a sua tão amada filha. Pelas brechas das paredes o viu de longe, Genuíno estava num descampado cavando ininterruptamente o solo. Após violentar a enteada, dormiu sobre o corpo dela, mas acordando antes que a menina-moça entrou em casa e foi ver como estava Celidônea. As imagens da noite anterior estavam confusas em sua mente; foi quando percebeu a morte da mulher. Sem perder tempo, armou-se de uma pá e de um cavador e foi procurar o melhor lugar para sepultar sua ex-companheira. Cavava despreocupado, sorridente, sem se importar com o que fizera a enteada, os fatos existiram, ele não os premeditou, assim: enterraria Celidônea e passaria a fazer vida com Quitéria, afinal à moçoila não era sua filha legitima e ela seria obrigada a viver com ele, por bem ou por mal. Um ódio gigantesco invadiu a rapariga ao avistar Genuíno abrindo uma cova para sepultar sua mãe. Decidida subiu ao sótão por uma escada tosca de pau, de lá, desceu trazendo uma espingarda de socar de grosso cano, arma que Genuíno usava para caçar; sabia manejá-la, sua mãe a ensinara em dada ocasião para disparar em pequenos roedores que estavam atacando o galinheiro. Assim, depois de municiar a arma, foi ao quarto da mãe, porém o corpo de sua genitora não estava mais ali. Pelas frinchas viu Genuíno carregando-o nos braços para depositar na cova que antes preparara.
“Pobre mamãe, que Deus a tenha” – Pensou confabulando consigo mesma.
Demoradamente, Genuíno Paudalho, trabalhou cobrindo o corpo da falecida.
Terminando, cruzou a pá no ombro e segurando o cavador com a outra mão, retornou assoviando para casa; vinha despreocupado com certo ar de felicidade estampado no rosto. Ali, um cano de ferro foi escorado na madeira pelas frestas da parede. Com a arma escorada no ombro, a menina esperou Genuíno se aproximar um pouco mais. A bela imagem de Luzia Quitéria totalmente nua, vinha se formando na mente do camponês fazendo-o sorrir ditoso. O eco do disparo ressoou pela mata fazendo aos estridores cessarem suas melodias. O susto que Genuíno sentiu com o som do estampido do tiro, desapareceu com a dor surgida abaixo do ventre, no entre pernas. Seu pênis, testículos e partes das coxas, fora picotadas por uma carga de chumbo em fogo; igual ao susto, a compreensão e a dor, saiu o grito de agonia com o tombo que sofreu ao tentar caminhar para diante.
- Maldita! Maldita cobra. O que você me fez quenga dos diabos?
Gritava possesso, segurando com ambas as mãos o que sobrara dos seus órgãos genitais, totalmente estraçalhados pelo disparo da socadeira. Luzia Quitéria, calmamente, ainda trajando os restos do vestido acercou-se do homem, agora sentado, gemendo de dores. Veio seminua com os seios de fora sem se importar com mais nada. Carregava em posição de tiro a espingarda que alvejara Genuíno. Este ao percebê-la próxima, a fitou dentro dos olhos e sentiu chegar sua hora.
- Rasteje verme. Você me tirou o que de mais precioso eu tinha. Agora irá pagar com sua maldita vida – Explicou apontando a arma para a cabeça do homem.
Genuíno ergueu a mão como quem buscando tirar a mira de cima dele - Não o fiz por querer. Foi...
Não teve tempo de explicar; ouviu um estampido e sentiu um impacto fortíssimo da varredura do chumbo com os projeteis entrando por sua cabeça, trespassando algumas esferas àquela mão que foi erguida. Com o impacto, foi arremessado de costas no terreno, estrebuchou um pouco e ficou imóvel, morto por sua vítima. Com muito esforço, Luzia o segurou por uma das pernas, distanciando-a uma da outra, rasgou-lhe a roupa, deixando-o nu. Na seqüência foi até em casa e logo retornou com uma faca amolada. Junto ao morto: ajoelhou-se; segurando o que sobrara do sexo dele, puxou para cima e com um único movimento castrou o defunto. Olhando lhe com desprezo para o rosto, atirou aquela massa disforme para longe, recomendando-o a belzebu.
- É pra não mexer com as diabas, quando tu chegar ao inferno! Cachorro desgraçado.
Após, arrastou o padrasto até o quarto em casa aonde com mais um pouco de esforço, deitou-o no colchão em que sua mãe morrera. Suada, grudenta, foi até o velho baú, juntou suas roupas numa mucuta, catou as parcas economias que tinha, para depois apossar-se de uma lamparina meada; de posse do objeto retornou ao quarto, despejando um terço do querosene nas palhas e sobre o corpo de Genuíno. Olhando pela última vez para aquele salafrário, deixou cair o candeeiro sobre este. Mal o objeto tocou as vestes embebidas do finado, a chama do pavio beijou o liquido espalhado sobre este, fazendo surgir uma chama amarelada a qual caminhou ligeiramente por onde havia querosene unindo-se com as roupas, palhas, carnes e madeira do móvel, consumando-se uma enorme fogueira. Sem nenhuma pressa, Luzia Quitéria deu de costas para cama e caminhou saindo dali. As chamas completaram sua vingança. Saiu sem olhar para trás, embaixo da cajarana despiu-se das sobras da veste ficando totalmente nua a luz do astro rei que moldava a distancia uma tela em sombra, de uma árvore e de um corpo escultural a receber os ares que campeavam pelo torrão. Banhou-se com as águas restantes do pote, usando uma cuia, a qual introduzia no interior do recipiente e retirava cheia do precioso líquido. Enquanto banhava-se, o fogo ardia agora pelo teto da vivenda. Tomado o banho, vestiu uma surrada calça comprida que fora um dia de seu legítimo pai, uma blusa de mangas compridas, a única que possuía, e calçando uma chinela de rabicho caminhou estrada afora, levando consigo na matula somente aquilo que julgou útil para sair dali, além da espingarda. As labaredas vorazmente fizeram seu trabalho, deixando escapar de si uma fumaça escura a subir para o céu daquele torrão.
...
Luzia Quitéria caminhava estrada afora, algumas centenas de metros adiante, sentiu vontade de chorar, entrementes uma dureza enorme apossou-se de seu coração e esta apenas caminhou para diante. Não havia expressão em seu rosto vazio, só a estrada à frente e o gorjear de algumas aves era percebido por ela enquanto andava por aqueles caminhos, buscando resignar-se da sorte que lhe fora traçada. Ao cair da tarde, sentou-se a sombra de um juazeiro, algumas léguas longe de casa. Revirando a mucuta, retirou dali um pedaço de pão seco, uma pequena lata com farinha, pequenos pedaços de uma raspadura preta, e um “naco” de carne de bode salgada. Comeu apenas um pouco da farinha com raspadura, guardando o restante de volta na matula, passando a sentir uma sede medonha. Saciada da fome, escorou-se acomodando se ao tronco da árvore, deixando a espingarda ao alcance de suas mãos. Esticando os braços, espreguiçou-se, ciente de que teria de seguir em frente. Contudo, exausta pelos fatos e andança ocorridos, relaxou os nervos deixando vir sobre ela uma vontade de dormir um pouco. Erguendo a cabeça para cima, vislumbrou os fortes raios do sol trespassando as frestas das folhas na copa da árvore e ao longe na direção do sol poente, enormes sombras de cadeias montanhosas declinando sobre o campo. Seus olhos pesados começaram a fechar-se, quando um ruído fortíssimo invadiu-lhe os tímpanos, fazendo-a despertar e se por de pé de arma na mão. Não demorou muito para o som de uma voz rouca chegar aos seus ouvidos orquestrados pelo ranger de madeiras, cantando os seguintes versos.
- “A vida do carreiro é a melhor vida que há.
- Desconheço outro homem que assim viva iguar
- E se o existe só pode ser jangadeiro
- Que tombem tange no mar...
- Ohhhhh. Gaaaadooo.”
Embuçada por trás da árvore, Luzia Quitéria viu um caboclo tangendo calmamente um carro de bois, arrastado por uma pareia de touros. Em uma das mãos o caboclo sustentava uma preaca de couro cru, que vez por outra sibilava no ar para dar marcha ao veículo na velha estrada; o capiau vinha glosando versos da sua própria autoria.
- “A moça que eu mais amava,
- Com ôtro homem fugiu
- me deixanu uma sardade
- daquelas que arguém jamais viu.
- Ohh gaaadoo,”
- e mermo que eu esfole meu cavalo
- Inda hei de corta o calo
- deste vaqueiro tão vil.
- Oh! gado.
O condutor iria passar sem perceber a moça, caso ao ladear-se do juazeiro, Luzia não tivesse surgido a apontar-lhe a arma. O carroceiro estancou, parando sem entender o que significava aquela estranha aparição. Sem demonstrar nenhum medo, sorriu perguntando.
- O que é que ai minha filha? O que cê quer?
Perguntou sem a menor idéia do que ocorria, pois assaltantes nas estradas não eram raros, contudo assaltos a carreiros inexistiam, ainda mais o assaltante sendo mulher.
- Não é bem o que vosmecê ta pensando não. Não estou atrás de lhe roubar nada. É que depois de certas coisas que me aconteceram perdi a confiança em todo homem – explicou.
O caboclo sorriu, deixando aparecer sua dentadura falha - Eu não sei o que lhe ocorreu; mais vosmecê tem toda razão em desconfiar das pessoas: de gente ruim estas estradas andam cheias. Mais acredite! Não é o meu caso. Então se me diga em que posso servi-la?
- Se o Senhor tiver e quiser me dar, só quero água.
- Ora! Não seja por isso. Mais baixe a arma minha filha, pode até ser que você precise usá-la, mais não será em mim. Sou homem de paz e respeito – Respondeu desamarrando uma das duas cabaças que carregava a tiracolo na lateral do carro.
- Tome é toda sua, tenho outra de reserva e já estou mesmo perto de casa – completou estendendo-a para Luzia. Esta por sua vez baixou a guarda. Recebendo o recipiente bebeu no gargalo; saciada agradeceu a generosidade do viandante.
- Agradecida por sua bondade – explicitou estendendo a cabaça de volta ao tabaréu.
- Não! Não. Fique com ela; já lhe disse que tenho outra e tou perto de casa. Já vosmecê não: está viajando e vai precisar de água pelo caminho – Ao concluir sibilou o chicote no ar fazendo os bois caminharem outra vez para despedir-se – Inter mais ver Sadona.
- Luzia por sua vez atravessou a cabaça a tiracolo nos ombros, respondeu a despedida e caminhou em sentido contrário ao do carreiro, ouvindo-o distanciar-se ao som dos seguintes versos.
- “Fui uma festa na Paraíba, pras bandas de Catingueira.
- Dei uma brigada danada, mermo no meio da feira.
- Lá furei Ciço de Cacilda e atirei em seu Pereira.
- Mais veio um cabo de puliça e acabou ca brincadeira
- Ohhhhhh gaaaaadooo.”
- Neste dia dormi preso, cum lombo todo amassado
- Foi uma sova de cacete que levei du delegado
- Que estava todo prosa e muito bem acompanhado
- De quatro sordado da puliça, todos eles bem armado
- No que me restou fazer uma jura, a um padre que lá fosse
- Pois jumento carregado de rapadura, até o rabo é doce.
- Oh! Gado.