Maria Rita e o baile
Maria Rita e o baile
Lá para os lados da rua das Palmeiras não se vê mais nenhuma palmeira, deveria ter sido uma rua bonita imagina Maria Rita, vê uma casquinha de pão sobre a pia que já tinha areado, porcaria, parece que nasce sujeira, mal a gente acaba de limpar. E nem era tanto o que limpava no apartamento pequeno e de fundos que dava para um quintal antigo, era só que sempre fora prestimosa como se dizia no antigamente e apreciava essa palavra tão feminina; imaginava quintais muito limpos o chão de cimento lavado, lembrava-se de uma vizinha, quando menina, que encerava o quintal de cerâmica e ela ficava horas apreciando como trabalhava sem parar e como sempre quis ter uma casa assim, com quintal encerado. Agora mesmo, estava pensando em quem teria morado nesse quintal tão estragado e feito doce de goiaba de um pé de fruta tão velhinho, estranho que ainda desse uma flor e que se visse as goiabinhas começando a nascer; ninguém cuidava da árvore, só uma mulher de peignoir de morangos descabidos aparecia no quintal, vez em quando. Olhava com desanimo para a árvore e coçava a barriga descobrindo a perna com flebite avançada, fumava o toco que achava no chão olhando para os lados suspeitosa, Maria Rita se escondia atrás da cortina; a mulher chamava alguém, Nestor, ó Nestor, tem que derrubar essa porcaria de árvre que só dá fruto podre, num presta e ela sentia um aperto de faca no coração, de novo se escondia atrás da cortina. Gostaria de sair dali, morar num bairro onde pudesse morar numa casa com cachorro e deixar comida na janela para os passarinhos - árvores, muitas árvores, os flamboyants de folhas delicadas e ipês roxos e amarelos, meio quietarrões... um quintal encerado. Comentou-se que ela não prestou muita atenção na lida, olha lá, você vive sonhando Maria Rita, tem que fincar o pé no chão, mania de viver com a cabeça nas nuvens, mania de dançar, credo, você deveria guardar pro futuro Maria Rita, não vai ficar jovem para sempre, vêm as doenças, quem é que vai cuidar de você, sem dinheiro e estava mesmo difícil sem dinheiro agora que ninguém queria lhe dar emprego; foi diminuindo o tamanho da moradia, os dois filhos apareciam vez em quando e deixavam alguma coisa sobre a cristaleira da sala, pros seus alfinetes, mãe - que a gente vai mesmo guardando mais alfinetes que ficam tão parados do que agulhas que vão caminhando e cozendo - estava aposentada com um salário perplexo e começava a sentir uma dorzinha enjoada nas duas pernas, artrose lhe disse a médica jovem com ar acadêmico e uniforme engomado; estava atrás de uma mesa de vidro sobre a qual se via o retrato de uma senhora de óculos e farto buço ou seria bigode pensa Maria Rita constrangida e tem que fazer muito exercício, andar, não precisa ser depressa, o objetivo não é esse informa com a voz compassadamente neutra, timidamente pergunta se dançar pode e a voz compassadamente neutra se altera, não sei se seria o caso, quero crer que a senhora não pensa em dançar lambada, a boca se abre num espantoso sorriso de dentes sobrepostos, achou graça na própria observação e Maria Rita não responde vai para o salão onde dançava nos bailes com seus vestidos de tule; e um era em azul escuro com o corpo comprido de renda e um decote arredondado e colocara dois tufos de flores brancas e miúdas de cada lado do cabelo repartido ao meio, lembra-se de como se sentira tão feliz; o sorriso de mil dentes a coloca bruscamente de volta, a mulher da foto tem o olhar de vida em nó cego a senhora toma este medicamento e retorna em um mês para nova consulta e se houver algo que queira me perguntar, não, não tinha, só como conseguira guardar tanto dente na boca, ela olhava com certa inveja já tinha perdido seis , sua ponte balançava, o gancho vez em quando fincava na gengiva, no meio de uma conversa ela levava susto com a dor, devia fazer uma cara de sofrimento, as pessoas paravam de falar, sê tá bem Maria Rita, claro, claro, mordi a língua, só isso, doi né. Iria pedir ao filho uma ajuda para colocar uma ponte menos móvel, tinha vergonha de pedir, amolar; mas uma das coisas que queria mesmo, mesmo, um dia, era voltar a dançar, dançar como a bailarina da história que colocou os sapatinhos de ballet e não conseguia mais parar não lembra se morreu de tanto rodopiar; era tão somente que sempre gostou dessa forma de expressão de vida e enquanto fazia sua verdura cozida aproveitava para inventar passos que era leve e ainda graciosa. Sua amiga Prudência sabia desse seu gosto que tinha poucos, caminhar, ver as aves no céu, procurar estrela cadente; Prudência, como ocorre muitas vezes, nada tinha a ver com o nome, meio amalucada, pintava as unhas compridas de vermelho escuro; alta e magra, boca em babados, roupas coloridas que de cinza chega a vida, né mesmo - nunca soube explicar o porquê de ter tal nome, sei não, promessa acho, me chamam de Pru, num fica mais chique menina e Maria Rita sorria, gostava da amiga que a procurava nos dias frios de julho para fazerem pipoca e assistirem um filmezinho, Pru sempre escolhia filmes de terror Maria Rita não entendia bem essa preferência, só sabia que teria que colocar um colchão no chão que a amiga não iria embora tá tarde né, essas ruas estão escuras, numa tarde Pru chega animada: - te alegra mulher que vim te convidar para um baile e não me venha com as suas desculpas que esse é um baile na Avenida Angélica, clube de boa freqüência, bem como você gosta e vamos lá no quarto que quero ver o que você vai vestir que é já no sábado esse seu cabelinho tá feinho cumadre, vamos dá um jeito e ia falando e Maria Rita a seguia entre divertida e curiosa. Pru ia abrindo o guarda-roupa que esse não, que parece de missa e esse também, credo, você só tem vestido de missa de sétimo dia e acabou escolhendo um verde água de tecido fininho e cintura baixa que ela não usava há anos, do casamento civil de um dos filhos ai que você vai ficar parecendo uma mulher dos anos trinta, eu tenho um colar de pérolas que vai te cair como uma luva e ia falando, falando e Maria Rita começou a sentir um estrangulamento na boca do estômago meio alegria, meio nervosismo, meio vestido de tule, meio flores na cabeça. E no tal sábado Pru a veio buscar com um amigo, senhor Washington, de blazer xadrez e dente de ouro na frente que falava baixinho, meio ceceoso. Maria Rita tinha as mãos meio suadas e o ferrinho da ponte móvel começou a enterrar-se na gengiva, eu acho que é tensão, sabe, tantos anos aqui sozinha, eu tenho um remédio pra relaxar, não que aí eu durmo e não vejo nada, não é remédio forte é natural,de maracujá, engole rápido que você nem percebe. Maria Rita engole o comprimido e aprecia o salão imenso onde pessoas conversam e tomam drinques. Num canto, a orquestra já se prepara para iniciar o baile, senhoras e senhores e é é é... com muito prazer que apresento a vocês a famosa orquestra de Afrânio Araujo que veio, mais uma vez, abrilhantar nossa noite de sábado dançante. Esperamos, tá,tá o pistão completa, que vocês, tá,rá,rá, divirtam-se, que a noite tá,rá,rá,rá a a a é uma criança, completa o locutor de gravata borboleta rosa e olhar vigilante. Maria Rita se diverte olhando os pares que se dirigem para a pista ao som do bolero de Anísio Silva, que alguém me disse que tu andas novameeeente e marca o compasso com o pé, alguns casais floreiam os passos ela se encanta e olha em torno. E o vê num canto da sala - não que fosse para ser tão observado que nem era tão alto, meio magro e o olhar que vai pulando devagar pelo salão, usa terno escuro e está sem gravata. Às vezes acontece quando você olha a nuca de alguém e esse alguém se vira pra ver quem cutucou sua nuca com os olhos - eis que assim sucedeu com Rosa Maria e José - que disse chamar-se só José mesmo, nome bem simples como queria a mãe, não sabia se era qualquer homenagem ao pai de Jesus - ela se lembra da figura da Nossa Senhora do Desterro sentada de lado num burrico com Jesus nenê no colo, ao seu lado, São José com o cajado e um anjo à frente que os guia pelo caminho difícil e que era uma oração muito linda obrigado por afastar de mim as trevas...e o medo que atormenta o meu caminhar. Só estranha um pouco Nossa Senhora estar sentada de lado no burro sem cair, imaginava que deveria ser o anjo que os protegia. Volta-se para o estranho José que lhe sorri meio cansado, nem era bonito mas os olhos são do azul mais piscina que já vira até então, não, não costumava ir a bailes, separado há muitos anos, os filhos estavam no exterior, foram dançando pelo salão sem esforço e Maria Rita ia deslizando, deslizando até que pararam pra tomar ar no terraço e olhavam a noite que ia alta; Pru os olhava de longe e fazia sinal com o dedo pra cima e ria, Maria Rita olhava a avenida que se preparava para o Natal; e falaram com calma e serenidade e se prometeram ver que ela era alguém que não se achava tão facilmente, ele lhe disse muitas coisas devagar e ela boiava nos seus olhos azuis, se deram as mãos que as dele eram compridas e nodosas e ela olhava com susto e as suas com manchinhas marrom claro e havia sossego em colocar suas mãos nas de José. Mas no sábado seguinte ele não se encontrava no baile e nem no outro e nem no outro e nem no outro e Pru se irritou, dá licença hein Maria Rita, sê não tá meio velhinha pra ficar de bobeira assim? Afinal, eu te apresentei o Venâncio, bem simpático, já estabelecido, tem uma funilaria lá pros lados do Ipiranga, você nem sabe se esse tal de José é boa coisa, ficar apaixonada, assim, sem mais nem menos, isso é pras meninas, Maria Rita se defende, que não é nada disso , é que a gente conversou tanto e parecia que se conhecia há tanto tempo, ele era gentil e respeitoso e também queria morar numa casa , já esqueci Pru, já esqueci, mas não quis ir mais nos bailes da Avenida Angélica e aquele natal passou como tantos outros natais que vão ficando com as cascas de avelãs misturadas no farelo do panetone, o mês de abril chegou com seu frio descontente e seu céu azul como os olhos de José, pensava Maria Rita. O quintal dos fundos continuava feinho e a goiabeira feneceu numa tarde friorenta. Maria Rita a viu pela janela, seca e triste e chorou devagar, um pouco pela goiabeira, outro pouco por si mesma. Até que ele a viu um mês depois quando saia do prédio por puro acaso - que quando se fecham portas, por vezes, se abrem janelas no céu e dizem que isso acontece às onze horas da manhã - e ele lhe explicou com a voz emocionada como não tinha podido falar-lhe, esteve doente, precisou ficar internado que não era coisa tão grave mas que deu trabalho aos filhos que vieram visitá-lo, como foi burrice não anotar seu endereço; e ela o olhava com os olhos aquecidos, seu coração era de uma corça criança, nem tinha voz quando ele prendeu suas mãos nas dele eis que o carinho era o mesmo quando ela alisou sua face.
Fizeram um casamento simples e Pru foi madrinha, comprou um chapéu verde de aba larga, Maria Rita usava os tufos de florzinhas nos cabelos. Moram numa casa e num bairro, onde as andorinhas ainda aparecem no fim de tarde e pererecas conversam com sossego. São felizes e pronto pois que, às vezes, a felicidade pula a cerca. E dançam muito - vão deslizando, deslizando pelo salão de bailes, aos sábados; na cozinha, ela ainda dança enquanto ferve a água para o café; ele a olha comovido e a enlaça com carinho, vão dançando até o quintal. Quintal encerado.