COINCIDÊNCIAS (?)

A viagem transcorria tranquila. Três amigas, mulheres bem resolvidas, dispostas a encarar um ótimo fim de semana em Uberlândia. O desejo comum de assistir a uma corrida de carro havia motivado a fazerem o agitado passeio.

À tardezinha, hora do Angelus, uma das amigas, Jussara, convidou as demais para que a acompanhasse numa rápida oração. O pai de Jussara estava internado em um hospital de Goiânia, numa fila de espera de um transplante de fígado. A oração de Jussara comoveu a todas. Era de uma firmeza de fé e de uma entrega tão sem reservas que emocionou muito Ana Elisa e Giovana.

Passado o momento de fé e interioridade, a viagem transcorria entre músicas e papos diversos. Entre uma e outra canção os protestos pelos gostos que entre as três eram os mais variados. Jussara era fanática por música sertaneja, daquelas bem raízes, e isso já era um bom motivo para indignação das outras. Já Ana Elisa gostava de um sambinha melodioso e romântico de fundo de quintal, coisas de Martinho da Vila, e outros do gênero. Mas Giovana, ah, essa fazia o gênero clássico! Um Jazz, um piano e das brasileiras, no máximo Roberto Carlos ou Paula Fernandes. “A música tem de trazer poesia”, dizia ela.

Aproximando-se da entrada da cidade, um telefonema mudou completamente o rumo do programa. Ana Elisa, ao volante, endireitou-se para o acostamento para que Jussara pudesse falar ao celular. Jussara fora avisada pela sua irmã Zilá, que então fazia companhia ao pai no hospital, que o tão esperado órgão fora encontrado, e que a cirurgia do transplante poderia ocorrer ainda naquela noite.

Após desligar o aparelho celular, Jussara muito constrangida dirigiu-se às amigas:

— Ai, amigas. Sinto muito, mas a viagem termina aqui para mim. Vocês podem seguir seus planos porque eu vou fazer contato com o aeroporto, talvez consiga um voo ainda hoje.

Ana Elisa, a mais resolvida das três, tomou as rédeas da situação:

— Que isso? O que você está falando Ju, então acha que vamos deixá-la aqui sozinha numa situação dessas? Nem pensar, vamos direto pro aeroporto. Quem sabe ainda não alcançamos o próximo voo?

Sua atitude ao volante não deixava a menor chance de questionamentos. Parou no primeiro posto da cidade e se informou de como deveria proceder para chegar ao aeroporto daquele ponto onde estavam. Após as informações, o veículo seguiu outra via, desviando-se do sentido centro. Ao chegarem ao aeroporto, Jussara se informou de que havia um voo da TRIP que sairia às 21h. Teriam prazo suficiente para comprar a passagem e os procedimentos normais de viagem.

Enquanto foi fazer o check-in, as amigas aguardavam olhando sua bagagem. Outro passageiro aproximou-se da fila e distraidamente depositou a bagagem a seus pés para descansar as mãos. Ana Elisa, curiosamente passou os olhos na valise. Essa demonstrava ser uma embalagem térmica e trazia um emblema de Universidade escrito em azul. Ela levantou os olhos e o rapaz que a conduzia, trajava um jaleco com as mesmas iniciais no bolso. Imediatamente ela ligou os fatos: Universidade Federal, a valise térmica, o funcionário... “Não, meu Deus! Isso... isso seria um órgão?!”. Ana Elisa cutucou com o cotovelo a amiga, cochichando:

— Olha isso! – mostrando a valise – Isso veio da universidade, acho que é um órgão.

As duas se entreolharam e perguntaram ao rapaz, sendo Ana Elisa quem perguntou primeiro:

— Moço! Por obséquio, isso que você conduz aí, por acaso é um órgão?

O rapaz, desconhecendo a situação constrangedora que as duas passavam, respondeu amigavelmente:

— Sim, isso é um órgão. Será transplantado em um paciente em Goiânia ainda hoje.

— Moço, você sabe que órgão é?

— Sim, esse é um fígado, um senhor estava trabalhando num andaime e caiu desprevenido, sem chances de sobreviver e por incrível que pareça era doador declarado.

Ana Elisa não escondia as lágrimas, já prevendo a volta de Jussara. Giovana conversava mais com o moço. Contou que estavam justamente acompanhando a filha de um paciente que estava num hospital em Goiânia à espera de um fígado e que a cirurgia seria naquela noite.

Jussara retornou aliviada por ter encontrado passagem e por haver conseguido encaminhar tudo a tempo da decolagem do avião. Em seu retorno, encontrando as amigas em lágrimas, imaginou que sua irmã houvesse ligado novamente com notícias ruins e foi logo ao ponto:

— Gente, o que houve? Minha irmã ligou não foi? O meu pai...

— Calma Ju, não é nada disso. É que... esse moço parece estar aqui para enviar o órgão do seu pai...

Giovana fez as apresentações e mostrou a valise.

— Como assim? Quem é você?

O rapaz se apresentou:

— Olá, boa tarde! Sou Flávio Moura, funcionário da universidade e estou aqui para encaminhar um órgão para um hospital de Goiânia e suas amigas perceberam do que se tratava, então... enfim, é isso.

— Desculpe-me Flávio, mas as meninas já devem ter lhe falado que estou aqui na tentativa de alcançar um voo para lá, pois fui avisada que meu pai, que está na lista de espera, encontrou o doador. Você acha que esse órgão possa ser para meu pai?

— Provavelmente, pois não são todos os dias que se encontram órgãos disponíveis no país.

— Quer dizer então que irei viajar com um órgão que amanhã será parte do corpo do meu pai?

— É possível, apesar de ser uma grande coincidência.

— Meu Deus! Não acredito!

O momento foi de choro e lágrimas por longos minutos. Conversaram ainda outras possibilidades com Flávio, como se ele sabia para qual hospital seguiria e para qual paciente, e ainda se sabia quem era o doador. Flávio respondia a tudo, com extrema educação, retendo-se estritamente às informações que podiam ser oferecidas pelas normas da política de doações e transplantes de órgãos.

— No momento não sei para qual paciente e também não posso dizer, mas chegando à Universidade posso olhar os arquivos, se quiserem me ligar dizendo o nome do paciente, eu posso confirmar.

Despediram-se do rapaz e ficaram ainda aguardando o voo. Antes da decolagem tiveram as informações via telefone, confirmando que aquele órgão que seguiria na mesma viagem de Jussara, era sim o fígado que seu pai tanto esperava.

As amigas também se despediram e o avião finalmente alçou seu imponente voo. Levava consigo uma história incrível de que coincidências, acasos e destinos, acontecem. Ou por outro lado, não seria uma manifestação divina?