O circo precisa de lágrimas
Ele conversava com uma amiga. Como de costume, tentava fazê-la rir com a estratégia de sempre de retirar as palavras do lugar e recolocá-las onde ninguém espera. Para ele, o riso funcionava como uma espécie de termômetro de si próprio, de modo que o silêncio do outro era como uma espécie de negação do eu.
Hoje, porém, ela ria pouco. Não sabia se ela estava entediada ou com sono. Talvez preocupada demais com assuntos mais sérios para ouvir piadas tão tolas. Ele tinha consciência do fato de que freqüentemente a falta de riso do outro não era necessariamente sua culpa. Consciência, porém, não é sinônimo de controle. Trazia consigo como herança psicológica de algum momento mais ou menos traumático da infância a sensação perene de proprietário do monopólio de culpas do mundo. Era uma esponja absorvente de erros e falhas, e se as paredes de uma conversa exibiam rachaduras, era por negligência de sua própria engenharia do eu.
Sua auto-consciência tentava transportar para ela suas coleções de angústias. Erguia em sua frente um espelho monumental, como que para nela refletir suas próprias rachaduras. Sim, sabia que o mundo não era diferente dele. Um encanamento absurdo, que vazava não se sabia aonde e aumentava diariamente a conta de água da existência. Não adiantava. A tristeza da platéia de um circo é a razão de ser do palhaço. Cria o riso como torneira da lágrima.
Mas nessa conversa não havia lágrima. Disparava a comédia como uma metralhadora e recebia não mais do que risos que para ele eram apenas automáticos, que vinham por obrigação e abafavam o sonoro ruído do tédio que estava ali em algum lugar.
Frustrado, muda o tom da conversa. Pergunta sobre o estudante de direito, com quem ele achava que ela tinha terminado o namoro. Na verdade, não haviam terminado, posto que sequer haviam começado. A incerteza a maltratava, posto que não sabia se existia alguma relação. Falava isso e lembrava o outro, o artista plástico. Esse era louco, pior que o primeiro. Lhe comprava um sorvete e se dizia apaixonado, mas no dia seguinte lhe falava da ex, e que pensava em voltar. Ela agora deixava as expectativas tomarem conta de si, deixando também o dia-atrás-de-dia frustrar cada momento antes esperado com o horror do nada que acontece a cada minuto, como que em um assassinato sistemático de instantes a sangue frio. Enfim, ela se desespera ao lembrar-se de que passava exatamente pela mesma situação a dois anos atrás. Sente-se presa como que em uma gaiola de tempo, aquário das repetições eternas. Torna-se redundância. Entra em prantos.
Em seu circo de conselhos, ele fala em viver o presente. — A frustração é dos futuristas. Os indecisos são fábricas que inundam o presente com suas chaminés de fumaça preta de dúvidas. As redundâncias são mitos criados pelos desatentos.
Ela se acalma. Ele conta uma piada. O rosto, ainda molhado de lágrimas, consegue rir, apesar do desespero ainda berrado por seus olhos. Na realidade, ria por causa do desespero. Ele era o palhaço da platéia perfeita, e sabia disso.
Duas lágrimas ainda caíram incontidas antes que ela risse da piada seguinte.
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