DESTA VEZ, OUTRA HISTÓRIA
Naquele dia, pressentiu que algo estava prestes a acontecer. Do lado de fora do quarto, encolhida em um canto escuro ouvia em silêncio o que parecia ser uma violenta discussão. Palavras, ditas em tons ásperos e barulhos de objetos sendo arremessados eram freqüentes. Estava com tanto medo que estava trêmula. Tremia tanto que por mais que se esforçasse não conseguia se conter. Não que a situação que estava vivenciando era nova, incomum, mas, pela agressividade que desta vez esta sugeria. Temia desesperadamente por sua mãe, que estava do outro lado da porta, sozinha sem ninguém para defendê-la.
A mãe era a sua única família. Não tinha pai, irmãos, tios, avós, pelo menos nunca ouvira falar em nenhum deles. Eram somente as duas perdidas na vida. Perdidas no mundo. Vez por outra a mãe arrumava um namorado, que, como os dias que passam sem nunca mais voltar, eles também passavam, deixando marcas em ambas. Marcas de tristeza e sofrimento e desta vez, não seria diferente. A porta fechada e os gritos a levavam a acreditar nisso.
A angustia lhe consumia, por isso rezava e pedia a Deus. Pedia proteção à sua mãe. Pedia para tudo terminar bem. Pedia para ser feliz. A felicidade era o que mais queria. Não queria mais viver daquela maneira, vendo sua mãe sofrer as piores humilhações. Queria acabar com tudo aquilo e fazer com que sua mãe mudasse de vida. Mas, não conseguia, era muito nova para isso. Muito nova para ser ouvida por um adulto. Muito nova para ser levada a sério.
Quando a porta se abriu um silêncio ensurdecedor tomou conta do lugar, e, em um hiato de poucos segundos, que mais pareceram horas, um vulto apareceu na porta, uma imagem fantasmagórica cercada de sombras, transformada pela iluminação deficiente. Mas ela não se assusta, não tem medo de fantasmas. Para ela fantasmas são males pequenos perto dos males que vive diariamente, desde o amanhecer até anoitecer. Quando a mãe sai do quarto fica aliviada, então, corre em sua direção e a abraça fortemente, mas, a mãe fica imóvel. Impassível diante do abraço da filha, não demonstra qualquer tipo de sentimentos, seja amor ou ódio.
Sem nada dizer, a mãe pega-a pelo braço e sai puxando-a porta afora. Ao perceber que a mãe carrega em uma das mãos uma sacola com roupas sente-se feliz. “Vamos embora”, pensa. Este pensamento a deixa animada e apesar das pequenas pernas, caminha fácil, ao lado da mãe, sem esforço, parecendo caminhar sobre as nuvens. De repente sente-se despida de todo o medo que a afugentava. Sente que esta a poucos passos de ser feliz. Ser feliz para sempre. Ela e sua mãe.
Enquanto caminham, pensa em perguntar para onde vão, o que aconteceu, mas, não tem coragem. Fica em silêncio. Lutando contra a euforia que sente por deixar para trás, aquele lugar. Aquela vida. Aquela maldita vida.
A mãe chora, talvez de alegria, pensa. Ou por temer o que as espera. O choro da mãe começa a preocupá-la. Ela quer dizer algo. Quer acalmar a mãe. Quer consolá-la. Dizer para ficar tranqüila. Dizer que a ama. Mas, não consegue, não tem coragem.
Por isso deixa se levar. Não quer nem saber para onde vai, para ela, qualquer lugar é melhor do que onde moravam e com quem moravam. Odiava aquela casa. Casa onde viu sua mãe apanhar pela primeira vez, e, o que foi pior, viu-a apanhar várias vezes. Casa onde viu sua mãe chorar, machucada, ensangüentada, violentada. Casa onde perdeu a alegria. Onde perdeu seus sonhos. Casa onde viva, foi assassinada. Mas, como nem todo mal dura para sempre, agora, tudo estava acabado, sentia isso. Estava livre. Estavam livres. As correntes haviam se quebrado. Agora podiam ser felizes. Mãe e filha, felizes. Felizes para sempre.
Andando noite adentro, percebeu que, aos poucos a movimentação da cidade foi diminuindo. Os barulhos de pessoas e carros cessando. Aos poucos as ruas estavam se transformando em um deserto.
Nada era dito. O silêncio era a companhia de ambas. Após horas de caminhada, aos poucos, a euforia do momento foi se esvaecendo, o cansaço e o peso do sono já estavam tomando conta dela. Não agüentava mais com o peso das próprias pernas. Sua mãe, com a mesma energia inicial a puxava fortemente. Os puxões aumentados pelo cansaço faziam-na cair. Caiu algumas vezes, o que não fez com que sua mãe diminuísse o ritmo. Sempre chorando. Sempre séria. Sempre em silêncio.
Chegando defronte a uma casa muito grande, sua mãe parou em frente ao portão apertou a campainha e colocando a sacola no chão, abraçou-a e beijou-a. Parecia que naquele momento sua mãe estava sentindo uma dor insuportável, que naquele momento estava perdendo para sempre um pedaço de si. Parecia que, se não estivesse morrendo, estava perdendo um pedaço de si. Rios de lágrimas rolaram de seus olhos. Molhando-o, de uma forma que ela nunca vira antes. Mas, mesmo assim, a mãe nada disse. Quando o portão começou a se abrir ela se levantou e saiu. Sem olhar para trás.
Ela ficou ali, imóvel, olhando para mãe, que aos poucos se distanciava. Nada fez. Não conseguia. Quis gritar. Implorar à mãe para que não se fosse embora. Quis sair dali. Acordar do pesadelo em que estava vivendo. Mas ficou muda. Impassível. Apesar de tantas vontades, tantas coisas a serem feitas para evitar o que estava acontecendo. Ela simplesmente aceitou. Ficou somente observando a mãe desaparecer completamente por entre as sombras da noite. Desaparecer para sempre. Não chorou. Não gritou. Não se desesperou.
Anos mais tarde, defronte àquela mesma casa, lembrou-se desta história, instantes antes de deixar seu filho recém nascido no lugar, então, num ato de coragem, resolveu mudar a história. Abraçou e beijou seu filho com muito amor e saiu de lá decidida, sem olhar para trás. Feliz.
O círculo foi quebrado. A história mudada.
Pois, dessa vez, tudo foi totalmente diferente e o amor venceu.