Da sacada

Uma das minhas manias é ficar longos minutos a olhar, da sacada de meu apartamento, o movimento que se descortina a minha frente.

É obvio que a paisagem não muda, a não ser quando um prédio vem abaixo, uma árvore é arrancada de seu local original de plantio, ou quando surge alguma construção. Nesse caso, ela se modifica aos poucos, à medida que a construção toma corpo.

Assim, não é difícil perceber qualquer mudança no ambiente, mesmo a certa distância, pois a visão que domina meus olhos, ainda possível de enxergar longe, é vasta. Alcança o horizonte do mar, mais além da Catedral Metropolitana de Fortaleza para o lado oeste, para o lado leste os prédios que habitam a Av. Santos Dumont, na confluência com a Av. Barão de Studart, e até um pouco mais.

Antes, quando aqui vim morar, poucos prédios cobriam minha visão, o mar era mais visível, hoje o enxergo apenas por estreitas nesgas deixadas pelos edifícios construídos ou em construção. Eu sempre acompanhava, ao entardecer, as escunas que fazem o passeio turístico em frente do calçadão da beira-mar. Elas saem da Praia do Mucuripe, percorrem toda a orla, passando pela Ponte Metálica e fazendo o retorno no Marinas Hotel. Antes do desembarque na Praia do Mucuripe, uma pequena ancoragem na Praia Mansa, para que os turistas possam tomar banho de mar. É claro que eu não tinha toda essa visão, mas possuia a experiência desse passeio.

No que mais me detenho, entretanto, é no edifício logo em frente do meu. Não por voyeurismo, mas por pura curiosidade. Embora não seja antropólogo, sociólogo ou mesmo psicólogo, gosto de estudar o comportamento das pessoas, mas desde que isso não me venha tomar muito de meu tempo, isto é, não tenho isso como uma atividade de pesquisa ou atividade a ser cumprida rigorosa e diariamente. É apenas passatempo.

O edifício em questão tem seis andares, dois apartamentos por andar, talvez seja uma construção dos anos oitenta do século passado. Sobre pilastras, apresenta bom recuo, aproveitado com a guarita e um bonito jardim. Os apartamentos possuem sacadas, balaustradas, ou varandas, como são conhecidas essas dependências de casas ou apartamentos aqui no Ceará.

O sexto andar compreende a cobertura, onde mora um senhor de seus 55 anos, de nacionalidade francesa, irrequieto, solteiro e promovedor de algumas festas bastante animadas. Seu apartamento cobre toda a extensão do edifício. Há uma piscina com dimensão de 4x8cm, um salão de jogos e demais dependências. O salão de jogos abriga uma mesa de bilhar, uma mesa para refeições, que às vezes é utilizada para um carteado, e várias cadeiras e sofás. Todo o salão é fechado por grandes janelas de vidro transparente. O francês não recompõe o ambiente com cortinas, deixando a área totalmente devassada. Era por aí que muitos de nós moradores dos apartamentos defronte ao do francês tomávamos conhecimento da jogatina e das orgias acontecidas naquele local.

Antes de qualquer programação o francês sempre oferecia aos seus convidados e convidadas um churrasco, que podia variar para peixe ou mesmo frango, dava para sentir o cheiro das carnes no ar. Mesclado com banho de piscina, ele e seus convidados estendiam suas farras até ao amanhecer. Durante o banho de piscina, que ficava sempre na penumbra por causa das plantas e da pouca luz, as garotas faziam topless, isso após meia-noite.

Quem não conseguia dormir do lado de cá, geralmente chamava a polícia, que nem sempre aparecia. Acho que havia algum trato entre o francês e esses elementos da polícia, os que guarneciam a praça próxima.

Depois de muitas confusões, o descendente da terra de Napoleão decidiu tornar menos devassa sua sala de jogos. Ele comprou quinze vasos de cimento contendo mudas de fícus-benjamim e os colocou no peitoril de suas janelas. Duas vezes por dia ele molhava essas pequenas plantas, e o fazia com cuidado e carinho, para não deixar cair água nos apartamento abaixo do seu. A primeira consequência dessa atitude foi a queda de um dos vasos, provocada pelo vento, que obrigou o francês a telar toda a área das janelas.

Com o passar do tempo as plantas foram crescendo e aumentando a preocupação dos moradores do edifício pelo aumento no peso dos vasos. Foi mais um caso criado pelo francês e que precisou a intervenção do síndico. Fiquei sabendo por um dos condôminos do edifício e amigo meu que a assembléia havia determinado ao inquilino da cobertura fazer a poda das plantas regularmente. Era uma tarefa que ele executava rigorosamente a cada dois meses.

Hoje já não moro mais na mesma rua, mas sempre que passo por ela me lembro do francês, que ainda reside lá e vive trocando suas plantinhas, quando crescidas, por outras mais jovens. Parece que as festinhas continuam.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 10/03/2012
Reeditado em 23/03/2012
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