GULA
Desde criança, Pedro sempre fora um glutão. E a palavra estava longe de ser um exagero. Na escola, após devorar o seu lanche, costumava comer escondido o lanche dos colegas. Seus olhos ficavam fascinados por jujubas, balas, algodão-doce e qualquer outro tipo de guloseima que fizesse a cabeça das crianças. Além disso, adorava sanduíches. Gostava de presunto, queijo, carnes, alface, cebola, ketchup, maionese e tudo o mais que desse prazer ao seu paladar. Isso lhe rendeu uma barriga enorme, motivo de muitos apelidos “carinhosos” dos seus colegas, como “barril”, “tonel” e “orca”.
Comer, para ele, era uma religião. Mais do que isso, era a sua razão de viver e a fonte de prazer mais imediata e recompensadora. Já adulto, costumava mandar toda a família embora nos finais de semana para curtir um banquete preparado especialmente para ele. Desta vez, havia sido difícil despachar os dois filhos para uma viagem e a mulher para um salão de beleza. Mas, por fim, havia conseguido. Não teria nenhum deles por perto para reclamar do seu peso e da sua barriga pronunciada. Sempre que tentava saborear um prato delicioso, tinha que ouvir chatices sobre pressão alta, diabetes e perda de peso. A família apenas queria que ele fosse mais saudável, é claro. No entanto, ele não conseguia abandonar o seu passatempo favorito: comer. Ele aturava críticas diárias, mas neste fim de semana seria diferente. Comeria tudo o que desejasse e não ouviria nada que incomodasse sua consciência. Estava prestes a realizar seus mais loucos desejos gastronômicos.
O primeiro prato do banquete foi uma maravilha: um imenso peru decorado com legumes, dourado e suculento, acompanhado por talheres de prata, velas aromáticas e uma taça de cristal que ele havia recebido de presente em uma viagem à Europa. Para acompanhar, uma travessa com arroz branco e outra com purê de batatas. Um belo vinho Chianti de 1965 dava o toque final ao banquete. A mesa era um misto de sofisticação e crueza. O esmero com que havia planejado tudo o deixava orgulhoso.
Lentamente, começou a devorar a carne. Havia decidido que não teria nenhuma pressa em degustar o banquete, assim poderia aproveitar o prazer mais intensamente. Mordeu animalescamente as coxas e as asas, fazendo escorrer a gordura pela barba. Partiu ao meio o restante da ave e retalhou com os dentes os dois lados do peito. Ao mesmo tempo, intercalava com o arroz e o purê, sorvendo o vinho para molhar a garganta. Acabou com tudo em menos de quinze minutos.
Logo que terminou o peru, Pedro foi inundado por aquela gostosa sensação de estômago cheio. Esticou as costas em sua poltrona e aproveitou a saciedade. Estava feliz, completo, realizado. Uma sonolência começou a tomar conta dele, mas inclinou-se rapidamente e tomou um café para afastar o sono.
Ainda não estava satisfeito. E havia antecipado isso. O peru havia sido apenas uma das "entradas" para o prato principal em seu almoço.
Sua cozinheira trouxe então um imenso prato de bacalhau acompanhado por cebolas e batatas. Pedro admirou a beleza e a organização do prato fumegante por alguns segundos e começou a comer. Deliciou-se com o gosto salgado e macio do peixe, realçado pelas batatas bem cozidas e pela cebola adocicada. Ele adorava alimentos salgados. Quanto mais comia, mais dava água na boca. Era um deleite interminável. Logo depois, tomou dois copos com água gelada, para contrapor o sal na boca.
Após o bacalhau, sentiu novamente a saciedade. A gratificante sensação de prazer e satisfação proporcionada pela serotonina invadindo o corpo. Mas isso não o faria parar de comer. Pelo menos não agora. No pensamento de Pedro, saciedade era um sinal para se comer mais, e não o contrário. Não importava o quanto sua barriga estivesse cheia.
Pediu que viesse uma travessa de porco assado que estava cheirando e excitando seu paladar desde o primeiro prato. A cozinheira deixou o prato com cerimônia sobre a mesa e observou Pedro por alguns segundos enquanto ele pegava os novos talheres para fatiar o suíno. Sorriu, satisfeita com o prazer do patrão em provar seus pratos deliciosos.
Quando ela saiu, Pedro não vacilou e cravou os dentes na carne macia e suculenta do porco, saboreando-a junto com o óleo engordurado que cercava o animal. Era uma de suas carnes favoritas. Apreciava particularmente a maciez e a textura, desmanchando-se na boca.
Limpou os dedos e parou um pouco. Uma pequena dor no ventre o incomodava. Tomou uns goles de água e aliviou a dor.
O próximo prato eram pedaços de carne de um churrasco que ele fizera no dia anterior. Picanha, maminha, toscanas e frango feito na brasa. Pedro adorava carne. Era o seu alimento favorito. Do peixe ao chouriço, admirava todos os tipos. As gengivas já estavam doloridas e ressecadas de tanto mastigar, mas mesmo assim consumiu os enormes pedaços ainda nos espetos, cobertos por sal grosso.
Agora Pedro estava próximo da satisfação plena. Porém, a dor no ventre voltou a incomodá-lo. Dessa vez mais forte. A cozinheira já estava trazendo uma lasanha quando ele pediu que ela voltasse e trouxesse um copo com água. Bebeu dois copos com gosto, mas a dor ainda persistia...
Ele imaginou que um pouco de sorvete aliviaria a dor por ser gelado. Então pediu um pote de napolitano. Comeu a metade até perceber que estava sentado numa poça de fezes e sangue. Seu intestino havia rompido e ele nem havia notado.
A cozinheira achou o corpo e quase teve um infarto. Depois de chorar copiosamente e ficar ao seu lado por longos minutos, pois tabalhava para o patrão desde a infância, ficou satisfeita pois ele havia morrido com um sorriso no rosto.
Apesar da terrível dor no ventre, Pedro não teve dúvidas e continuou degustando o sorvete. O que mais poderia fazer? O fim era inevitável. A comida estava deliciosa. Que modo melhor de chegar ao fim a não ser fazendo o que se gosta? E foi o que fez. Ele gostava de comer. Comer exageradamente. Comeu o sorvete até desmaiar sobre a mesa com hipotermia, pois havia perdido uma grande quantidade de sangue. Comeu até morrer. Comeu com gula.