Cantata
- “Bate o sino, pequenino, sino de Belém”... A música que vinha da igreja o atraiu de longe. Era a cantata de natal, que a comunidade realizava todos os anos. E aquelas vozes tão infantis fizeram-no lembrar-se de anos já muito idos! Entrou, sentou no último banco, quietinho, para que ninguém se incomodasse com a sua presença. Ali ficou ouvindo aquela música tão conhecida e que lhe trazia uma vontade quase incontrolável de chorar.
Ali naquela igrejinha, que quase nada mudara com o decorrer dos anos, ele, ao invés de se sentir em casa, percebeu que teve a vida interrompida pela ganância do desconhecido. Descobriu que, nos trinta e cinco anos que estivera ausente, não havia vivido! E assim ficou, numa autocontemplação, rememorando fatos, relembrando rostos e sorrindo para aquelas lembranças. De repente, reparou em um dos meninos que faziam parte do coro infantil. Meu Deus! Exclamou. É meu filho! É a cópia exata do menino que eu deixei há anos! Mas como pode? Parecia-lhe que o tempo não havia passado e que o filho estava ali, em sua frente, tal qual lhe dizia sua memória.
Minutos se passaram e ele sequer conseguia se mover. O prefeito da cidade tomou a palavra, assim que o coro terminou de cantar. Ele o conhecia, era seu amigo de infância, o Zeca. Sempre fora estudioso e inteligente, um líder nato. Não o admirava ele ter se tornado líder máximo daquela cidade. Dez minutos de um discurso singelo e sincero, típico daquele homem tão simples quanto respeitado. Ao término da oratória, ele pediu que a sua família chegasse perto, para que juntos fizessem uma oração. E qual não foi a surpresa, quando ele viu ali, a sua Fátima, aquela menina linda que o havia encantado, aquela que o fez pai de um lindo menino e que o faria novamente, mas que ele nem soube se aquele bebê havia nascido.
Ficou incrédulo, não podia crer que o seu melhor amigo havia roubado-lhe a família. Um ciúme dolorido brotou em seu peito, à medida que as pessoas, tão conhecidas dele, foram se achegando para perto do antigo amigo e agora prefeito da cidade. Fátima foi a primeira, seguida por um rapaz bonito, de seus quase quarenta anos. Sim, era seu filho, tinha certeza disso. Aquele homem era o filho que ele havia deixado ainda pequeno ao sair em busca de uma felicidade nunca encontrada. Depois do rapaz, uma moça, muito bonita, subiu no altar, ostentando uma barriga de uns sete meses de gestação. Como era linda, lembrava-o de Fátima. Ela estava exatamente assim, quando da última vez que se viram.
Outros dois irmãos subiram também, esses bastante parecidos com o pai. O menino que ele avistara no meio do coro estava ali, dentre os membros da família. Agora ele entendia, era seu neto. Mas o antigo amigo o tinha para si. Como ele pode? Como ele teve coragem de roubar-lhe a família? Com esse pensamento, ele pensava em gritar, em acusar o amigo, em contar a todos ali, que aquela mulher era dele e que dois daqueles filhos, possivelmente, também eram! Mas antes que pudesse pronunciar qualquer palavra, Fátima pegou o microfone da mão do marido e começou a falar com aquela voz que ele reconheceria de olhos fechados:
- “Meus queridos, eu gostaria de agradecer a presença de todos. Gostaria de agradecer imensamente o carinho e apoio que vocês têm demonstrado pelo meu marido, durante toda a carreira política dele, desde vereador, até prefeito desta cidade. Ele, que como vocês sabem, foi o esteio, foi o amparo que eu tive quando meu primeiro marido me abandonou. Ele que adotou minha família como dele, que criou meus filhos com um amor que eu jamais esperaria do pai biológico deles e que me deu mais dois filhos lindos e abençoados! Agradeço a Deus por ter merecido esse homem na minha vida!”
Uma aclamação foi ouvida, as palmas não cessavam e os gritos de aleluia não diminuíam. E no meio daquela harmonia e felicidade, estava um estranho, que havia dado, de mãos beijadas, sua família a outro homem. Ali estava um farrapo, um egoísta, que não merecia sequer ter feito parte da vida daquelas pessoas, quanto menos querê-las de volta. E assim se foi, silenciosamente, da mesma maneira que chegou. E ao longe, ouvia novamente o coro, que cantarolava outra melodia, tão antiga, quanto cabível naquele momento:
- “Quero ver você não chorar, não olhar pra trás, nem se arrepender do que faz”...