ARCA PIRATA NO DILÚVIO DAS HORAS.

18h30m

Nos esplendores do final dos anos 90 alguém lá em cima resolveu abrir as torneiras e deixar as águas rolarem. Foi a mais forte chuva da década que desabou sobre a cidade de São Sebastião já tão castigada.

Eu estava em uma pequena loja da Rua da Alfândega onde fui para trocar a gravatinha de Thalis Alexandrino Medeiros. Ele, em sua aristocrática exigência, dispensava as gravatas de cores alegres, optando pelas cores cinza e marrom. A gentil vendedora, depois de deixar tramitar a burocracia para o ato da troca do produto o envolveu num charmoso embrulho de papel dourado.

– É para o seu filho? Perguntou a simpática moça.

– É, ele adora esses padrões, gravata, smoking, sobretudo etc.

– Que gracinha. Qual a idade do menino? Quis saber a vendedora de farto sorriso carioca nos lábios.

– Ele ainda vai fazer nove! Expressei cheio de orgulho por ter um filho de forte personalidade no seu gosto de se vestir. Ao sair da loja mal coloquei o pé na rua movimentada de gente e uma chuvinha alegre de pingos inocentes começou a cair. Os pingos não incomodavam as pessoas que iam de um lado para outro sem abrirem seus guarda-chuvas. De repente aquelas gotículas angelicais se aborreceram e resolveram fechar o tempo,tornaram-se grossas e pirracentas caindo sobre a cidade. Iniciou-se uma desastrada correria, centenas de chapéus se armaram ao mesmo tempo. Tentei me refugiar em alguma marquise mas estavam todas ocupadas.

18h40m

Além da pirraça da natureza não passar ela começou a representar ameaça. Um vento frio coreografava a chuva para lá e para cá. No céu escuro uma forte tempestade estava sendo caricaturada na direção da pedra do Pão de Açúcar. Essa visão era possível pelos rápidos clarões eletroatmosféricos perfurando as nuvens. Alguém recém-chegado na aglomeração sob a marquise informou:

– Toda a cidade parou, Avenida Brasil está alagada e um enorme engarrafamento se estende do bairro de Manguinhos até Irajá! Veio um outro e também informou que nem os ônibus e nem as barcas estavam circulando.

19h32m

O pequeno embrulho contendo a gravatinha do Thalis estava molhado e começando a rasgar.

¨ É isso, se ônibus e barcas estão parados os trens podem não estar¨ Pensei.

Só me restava ir para a Central do Brasil e arriscar um trem até a estação Deodoro. Após um trajeto não muito longo lá estava eu mergulhado na multidão dentro do saguão do prédio da CBTU. Todos os painéis informavam a mesma coisa: TRÁFEGO FERROVIÁRIO INTERDITADO E SEM PREVISÕES ...

Um gigantesco murmúrio ecoava por todo o salão lotado de passageiros ansiosos para em irem para suas casas. Os alto-falantes agravaram ainda mais o estado de desesperança quando anunciaram:– Atenção, Senhores passageiros, devido às fortes chuvas que assolam todo o estado o tráfego de trens se encontra suspenso e sem previsão de restabelecimento!

Eu estava próximo aos guichês das bilheterias e percebi a multidão se ouriçando, como se quisesse invadir as plataformas. O falatório tornou-se mais acirrado e o empurra empurra começou a engrossar.

Em dado momento, ao olhar para o lado, vi uma jovem moça sendo esmagada pela multidão que a espremia de encontro a uma pilastra de mármore.

– Me dê a mão! Gritei para ela que mesmo sufocada esticou o braço, eu a puxei e nos refugiamos atrás de um parapeito de concreto.

– Muito obrigada. Você salvou minha vida! Agradeceu-me com total palidez. Logo nos apresentamos e passamos a compartilhar o mesmo desespero.

– Eu moro na Pavuna! Ela expressou com larga distância no olhar.

– Eu sou do Realengo! Respondi saudoso.

Após a calmaria nos ânimos da massa humana resolvemos ir para o lado de fora do prédio. Ao chegarmos sob um céu terrivelmente tempestuoso minha companheira respirou aliviado, mas seu alívio foi passageiro, terminando com a visão de uma Avenida Presidente Vargas naufragada, sem transporte público ou particular.

Em meio ao cataclismo nos entreolhamos. Eleonora, esse era o nome da linda jovem da qual eu tive a honra de salvar a vida. Eu da Z.O ela da Pavuna. Eu nunca havia visto nossos bairros tão distantes como naquele dia.

– Talvez seja melhor tomarmos o metrô até a Cinelândia!

Ela concordou e para lá fomos, em direção à estação subterrânea. Quando ainda percorríamos no saguão da CBTU alguém havia dito que o metrô estava em circulação até o Largo do Machado.

20h08m

Desembarcamos na Cinelândia e demos uma corrida até o Castelo. Nenhum veículo particular ou coletivo estava circulando naquele lado trevoento do centro da cidade. Eu e Eleonora estávamos com as roupas encharcadas. A gravatinha do Thalis perdera o embrulho, eu a embolei e a guardei no bolso traseiro da calça ensopada. “O que diria o Thalis se visse o estado de sua gravatinha?”.

Finalmente eu e Eleonora chegamos ao Castelo e nos refugiamos sob a marquise do prédio público do MTPS. Nossos olhos cansados e desesperançados buscavam e não encontravam nenhum táxi, nenhuma van e nenhum ônibus. Foi exatamente aí que avistamos o fantástico milagre estacionado em baixo de uma árvore sombria, a uns cem metros de nós.

– Olhe! Apontou Eleonora.

– Meu Deus, o que é aquilo? Indaguei.

– Parece um ônibus pirata! Respondeu a moça.

E realmente era, um sujeito gordo sem camisa e com galocha preta veio gritando em nossa direção:

– Bangu via Barra, um Real!

– Vamos!

Peguei a mão de Eleonora e corremos para o embarque.

– Eu vou para a Pavuna! O que vou fazer em Bangu? Hesitou a jovem.

– De Realengo você pode tomar outro ônibus! A convenci.

Embarcamos. O estado precário no interior do tal ônibus era pior do que o seu horrível estado de sucata externo. Tinha poltronas rasgadas e amarradas com arame e o teto com algumas goteiras. O design dele era o mesmo dos ônibus elétricos que há décadas foram extintos.

A enxurrada estava mesmo disposta a não cessar. Sentamos na segunda poltrona do lado direito, ela no assento da janela, eu no assento do lado do corredor.

Um cheiro forte de gás de cozinha empregnava o interior do ônibus. Rapidamente ele lotou.

– Vamos pela Barra! Disse o motorista. – A Avenida Brasil está intrafegável, mas na Barra da Tijuca o trânsito flui livremente! Se justificou o chofer nos enchendo de esperanças.

Todos nós, passageiros, tínhamos consciência do mal estado daquele coletivo e de sua infração às normas de circulação de veículos, mas o certo é que ele naquele momento acabou assumindo o papel de uma milagrosa arca nos prometendo a salvação diante de um dilúvio que parecia querer naufragar tudo e todos.

O comandante do velho ônibus, transfigurado em uma velha arca, sentou-se ao volante. Antes de ligar o motor ele nos deu mais esperanças.

– Fiquem tranqüilos, logo, logo eu tiro vocês desse lugar! Em seguida ele ligou o motor e a fumaça que, pelo certo, deveria ser expelida pelo cano de descarga na parte externa da velha arca acabou por sair diretamente pelo próprio motor, que ficava ao lado do volante. A acelerada nos fez engolir grande quantidade de fumaça. Houve por alguns minutos uma convulsão de tosses entre os passageiros.

– Acalmem-se. Isso só ocorre na primeira acelerada! disse o comandante.

Passado o risco de asfixia coletiva a arca seguiu em direção ao Aterro do Flamengo. Quando já estávamos na altura da Rua Santa Luzia nosso comandante viu, pelo retrovisor, um dos passageiros retirar um maço de cigarros do bolso. Do maço o passageiro retirou um cigarro e o colocou na boca.

– Pelo amor do meu São Cristóvão, não acenda esse cigarro! gritou o comandante – Esse ônibus é movido a gás de cozinha!

O fumante, apavorado, colocou o cigarro de volta no maço e o maço no bolso.

– Ô meu São Jorge, estamos entre um suposto afogamento e o risco de cremação! expressou em pânico um dos passageiros.

Até o Aterro da Glória tudo ia bem até que nos deparamos com um engarrafamento que se estendia dali até Botafogo e que acabou envolvendo a velha arca em sua extensão.

No exato momento em que a arca ficou impossibilitada de prosseguir um grupo de fanqueiros passou a batucar e a cantar o refrão de uma tal música: “Ela ela ela é boquete por tabela. Ela ela ela ...” Nosso comandante, ao perceber que a pista da Praia do Flamengo estava morosa mas andando resolveu fazer uma bandalha e subiu no canteiro passando para a outra pista. “Ela ela ela é boquete por tabela.”

21h20m

Numa velocidade de quinze quilômetros por hora conseguimos chegar no início da Enseada de Botafogo.

– Dobre à direita! Reivindicavam alguns

– Para a Barra, siga em frente! Orientavam outros.

Entre tanta gente indicando o caminho o comandante às vezes ia para a faixa do meio às vezes passava para a direita e então voltava para a esquerda. A velha arca parecia estar desgovernada e seu comandante em total estado de nervosismo. – Ela ela ela é ...

– Vire para a direita! Gritou um passageiro com pinta de lutador de vale tudo.

O comandante assim o fez e acabou por entrar no túnel Santa Bárbara.

– Céus! Pasmei!

Estávamos voltando para o centro da cidade.

– Jesus, o comandante não conhece o Centro nem a Zona Sul!

– Boquete por tabela ... Ela ela ela ...

A velocidade reduzida dentro do túnel nos fazia sofrer mais tempo por causa das buzinas tocando sem parar e do monóxido de carbono invadindo nossos pulmões e, além do mais, por causa do grupo de funqueiros batucando e cantando sem parar aquele obsceno refrão.

22h50m

Finalmente saímos de dentro do túnel e subimos o elevado no Rio Comprido onde o trânsito estava ótimo.

– Aonde será que essa arca vai agora?

Passamos sobre a Praça Onze, depois sobre a Avenida Presidente Vargas e sobre a rede ferroviária e ao descermos para o bairro da Saúde é que se deu a tal desgraça. O motorista pisou no freio e nada. Para evitar a colisão com carros que estavam parados na sua frente o comandante, que suava sem parar, colou a lateral do ônibus na mureta do viaduto a fim de arrastá-lo até parar. Com o enorme barulho da lataria arrastando os passageiros entraram em desespero.

– O freio acabou!

– O ônibus vai despencar!

– Ela ela ela é boquete por tabela ...

Depois de se arrastar por uns vinte metros a velha arca conseguiu parar.

– Como é que o Senhor nos transporta em um ônibus sem freio? Quis saber um passageiro nervoso com o susto.

O motorista levantou-se e, virando em nossa direção, explicou.

– Calma. O freio está bom, mas o limpador de para brisa ligado o tempo todo acabou com o ar. É só eu acelerar o motor durante cinco minutos e o freio estará restabelecido!

Duas moças levantaram.

– Vamos deixar o ônibus!

O comandante abriu a porta e as duas desceram a pé o viaduto. Em seguida iniciou-se o ato de aceleração do motor movido a gás de cozinha. De novo a fumaceira nos golpeou nos brônquios. -Ela ela ela ... cóf... cóf... cóf..

Ouviam-se tosses, pigarros e a tal música diabólica que nunca parava. Passados os minutos de restabelecimento dos freios as duas moças que abandonaram a arca voltaram enlameadas e trêmulas.

– Por favor, deixe-nos embarcar novamente, lá embaixo a água está na altura do pescoço!

Com essa notícia o comandante deu marcha a ré à arca para voltarmos e pegar uma outra pista do viaduto que nos levaria até a Avenida Brasil, na altura do Caju.

22h35m

No Sabão Português a Avenida Brasil estava intransitável. Nosso comandante subiu novamente num novo canteiro para poder entrar na pista de descida e sair da congestionada avenida. Tudo estava dando certo até que o comandante acabou por bater na traseira de um caminhão que transportava centenas de galinhas e frangos. Os caixotes caíram e as galinhas fugiram, tumultuando ainda mais a situação. O motorista do caminhão, depois de xingar nosso comandante de tudo que é nome feio, o desafiou para uma briga.

Nosso comandante, no auge do estresse, desceu da arca. Eles trocaram socos, agarraram-se e rolaram pelo chão alagado e enlameado com dezenas de galinhas aflitas. Nós corremos até as janelas para torcer por nosso condutor.

– Acabe com ele!

– A direita!

– Empurre-o no bueiro para que ele seja sugado!

_¨Ela, ela, ela ...”

00h03m

Depois de ter nocauteado o caminhoneiro o comandante vitorioso mas todo escoriado voltou ao seu posto. Ele estava sujo de lama e cheio de penas das galinhas, e mesmo assim passou a primeira marcha pondo a arca em movimento.

– Tem alguma coisa aí para se comer? Perguntava constantemente a famélica velhinha da poltrona detrás.

00h35m

Chegamos a um lugar escuro e baldio. Cem métros à nossa frente estava a subida de um outro viaduto.

– Suba aquele viaduto, é a Linha Vermelha!

– Não, não suba, é a Ponte Rio-Niterói!

– Entre na primeira à esquerda!

– Não, dobre a segunda à esquerda!

Eu descobri que na velha arca havia moradores dos mais diversos pontos da cidade: da Zona Oeste, da Zona Norte, da Zona da Leopoldina, da Zona Sul, da Baixada Fluminense e da Zona Rural. Daí o motivo da grande confusão no que se referia à rota.

Quando estávamos a uns vinte metros do tal viaduto o motor começou a pipocar até finalmente parar.

– Acabou o combustível! informou o comandante.

Olhei para o lado e vi Eleonora dormindo. Resolvi fazer o mesmo antes que o comandante resolvesse nos convocar para empurrar a velha arca viaduto acima. Quando já estava quase pregando o olho vi o vulto do nosso comandante saindo com um botijão de gás de cozinha nas costas para procurar um posto de revenda. Ao som de ela ela ela adormeci. Se pelo menos o dia amanhecer logo a situação será mais fácil de se contornar.

Como o sono transcende o tempo, além de revigorar o corpo, do meu sono eu só fui acordado tempos mais tarde com as fortes sacudidas da velha arca em movimento. Consultei às horas, três da madrugada. Olhei para Eleonora que parecia restabelecida. Através da janela avistei dezenas de aeronaves enormes sobre a pista com seus sinalizadores ligados e piscando.

– Céus, onde estamos agora?

Eleonora respondeu com grande animosidade:

– Estamos sobre a Linha Vermelha e ali é o Aeroporto Internacional do Galeão! (Tom Jobim) Eu vou descer logo ali na frente, na Rodovia Washington Luís!

A felicidade de Eleonora por ter sobrevivido ao dilúvio das horas embarcada em uma arca pirata era clara em seu lindo sorriso.

03h40m

A velha arca, depois do desembarque de Eleonora, saiu da Washington Luís e entrou na Avenida Brasil que estava com seu trânsito normalizado. Passamos por Parada de Lucas, Irajá, Fazenda Botafogo, Honório Gurgel, Guadalupe, Vila Militar, Magalhães Bastos e finalmente em Realengo, onde às 4h20m desembarquei a salvo.

Ao entrar em casa fui ao quarto e vi o Thalis dormindo, indiferente ao terrível dilúvio ocorrido. Rapidamente eu liguei o ferro de passar e consegui recuperar a elegância da gravatinha cinza do menino. Depois tomei um chá bem quente e fui para cama. Antes de adormecer pensei em Eleonora e sorri na condição de um verdadeiro sobrevivente de um terrível cataclismo carioca, composto pelas horas e pela terrível tempestade que assolou o Rio de Janeiro. "É são as chuvas de verão..."