DONA MARIA PARTEIRA

Helena, em estado de agitação, percorria os três cômodos da humilde casa da Rua Paraguaçu. Suas pernas afoitas iam pra lá e pra cá. De repente ela lançou mão da bacia de alumínio e algumas toalhas e de quando em quando olhava o fogão de querosene para ver se a água estava fervendo. Nesse meio tempo Maria Herculana, vinda do quarto, falou com nervosismo: -Tia acho que tá na hora, as dores tão aumentando! Com vinte anos de idade Herculana possuia preparo para tomar conta da casa. Seus cabelos de pouco trato a lhe ocultar a metade da face de cútis alva refletiam preocupação, enquanto falava com Helena.

Após ir e voltar rapidamente ao quarto Helena ordenou a Herculana: - Vá logo menina, chama dona Maria Parteira, tá na hora! Imediatamente Herculana pegou o guarda-chuva, olhou o relógio que marcava duas horas da madrugada. Havia chovido forte a noite toda mas agora havia só pequenas agulhas de chuviscos que se projetavam na fraca iluminação amarelada da rua de terra enlameada, semelhante a um pequeno marnel. Herculana teria de vencer uns oitocentos metros de distância até adentrar na favela São Miguel, cortada pela linha férrea. Lá entraria em mais três vielas antes de chegar no precário casebre de dona Maria parteira, todo construído com adobe. Herculana sabia do risco de estar circulando sozinha na rua àquela hora mas em nome da vida ela vencia o medo patinando passos apressados sobre o lamaçal. O mal cheiro das valas negras transbordadas exalavam um forte miasma. Ao entrar no primeiro beco da favela a jovem deparou com um homem idoso e duas senhoras. Eles estavam largando do serviço na fábrica de louça, situada na avenida principal. Por serem moradores da favela Herculana lhes pediu ajuda para adentrar na comunidade. O homem passou a acompanhá-la. - Mamãe tá com muita dor e tia Helena acha que o bebê tá pra nascer! Comenta Herculana com o senhor que a acompanhava. Logo chegaram de frente da residência da parteira e Herculana a chamou com um meio grito: - Dona Maria! Em menos de um minuto uma lâmpada acendeu no interior da casa. Acostumada com chamadas fora de hora a parteira tinha tudo ao alcance. Em seguida uma porta velha de madeira se abriu e revelou uma senhora de cor escura, cabelos grisalhos e mais de sessenta anos descritos em seu rosto sereno.

- Dona Maria, sou eu, filha da Mocinha. Ela tá pra parir! Disse Herculana com ansiedade.

Mediante a tal informação e a voz trêmula da jovem Maria Parteira se apressou. - Entre que vô me aprontar! Disse dona Maria. Quando tomava conhecimento de gravidez adiantada Maria Parteira deixava tudo em local de fácil acesso e geralmente em menos de três minutos ela já estava pronta.

Enquanto caminhavam Herculana explicava o quadro de sua mãe. O homem que a acompanhava se despediu. Ele sabia que ninguém estava mais seguro do que ao lado de dona Maria. Oitenta por cento das crianças dalí chegaram ao mundo pelas suas mãos. Ela herdou todo o conhecimento da mãe que por sua vez herdou da avó. Dona Maria não teve filhos e por isso sua missão estava fadada a desaparecer junto com ela.

Até o chefe dos meliantes que dominava a favela a tinha como mãe. Ele também lhe dava ajuda econômica já que sua missão de parteira era desenvolvida gratuitamente. As crianças que nasciam, em sua grande maioria, estavam predestinadas a viverem em condições sociais desfavoráveis. Mas, para dona Maria isso não importava, sua missão era ajudá-las a chegarem ao mundo e isso ela fazia com orgulho, fé e dedicação.

Chegando em casa Herculana e a parteira foram apressadamente para o quarto onde estava Mocinha sobre a cama se doendo em contrações. Estava veia.

- Há tempo que a dor não pára dona Maria! Disse Helena com piedade. Estava segurando a mão de Mocinha e com a outra mão passava pano úmido em sua testa. Rapidamente Dona Maria iniciou os preparativos.

- Me tragam água quente e pano limpo! Herculana correu para atender ao pedido. Da bolsa de napa a parteira retirou um terço, gilete, uma reza escrita a mão, álcool e ervas diluídas num litro com substância escura. Mocinha foi despida, já tinha a genitália raspada. O lençol da cama foi trocado porque estava ensopado porque mocinha perdia bastante líquido. Estando pronta a parteira iniciou o trabalho. Herculana trouxe o material. A mando da parteira Helena segurou firme na mão de Mocinha. Herculana esfregava a barriga com firmeza e em sentido giratório, da esquerda para a direita. - Força! ordenou a parteira. Mocinha, com as pernas posicionadas se esforçava ao máximo.

A parteira, com os dedos, rodeava a vulva para ver se a dilatação avançava e o bebê coroava.

Respira fundo, prende a respiração e faz força! Mocinha minava suor por todos os poros. Suas pupilas pareciam que iam saltar para fora, mas logo voltavam ao normal. Após uma hora de incessantes e árduas tentativas sem obter nenhum resultado a parteira não teve dúvidas. O bebê estava atravessado e sem passagem. Preocupação e exaustão passaram a dominar o quarto. Nessas situações, geralmente, mãe e filho entram em situação de risco e fica indispensável a necessidade de se fazer parto com o método de cesariana mas o único hospital com esses recursos ficava localizado no centro da cidade e tinha constantemente problemas de vagas e por isso as mulheres do Realengo, as humildes em sua maioria, não faziam nem pré-natal e contavam só com a sabedoria explêndida das parteiras locais. Assim era mocinha que agora só contava com a experiência e fé de dona Maria. Geralmente essas parteiras não possuíam leitura ortográfica mas eram sabedoras das grandes vivências e técnicas dessa divína missão. Mesmo tendo se deparado com partos de grandes complicações dona Maria nunca perdeu nenhuma mãe e nenhum bebê.E agora, diante deste dramático quadro, Herculana rezava e Helena consolava mocinha.

- Não há jeito, vou Ter que recorrer. Vocês duas, ao invés de se preocuparem ponham fé no coração que eu vou precisar de vocês! Expressa com autoridade dona Maria parteira. _ Herculana, esfregue a barriga com força, como se tivesse virando o bebê da esquerda para a direita! Ordena a parteira.

Dona Maria dá uma garrafa vazia a Mocinha e manda ela soprar com toda a força e dá novo toque em mocinha. – Força, agora! Diz dona Maria a Herculana que põe toda a sua força sobre a barriga de Mocinha, parecendo estar girando uma roda emperrada.

A parteira fez uma reza e aprofundou o toque. Um tom de felicidade iluminou o seu rosto. --Ele tá virando, ponha mais força! Herculana obedecia. Helena, enxugando o rosto de Mocinha, recupera a esperança. O corpo castigado de Mocinha já sentia os movimentos do bebê que de repente parecia estar rasgando lhe o ventre. Ela grita quase em desmaio.

-É agora, tá coroando tá coroando! A parteira já via a cabeça do neném. - Força, força que ele tá saindo! Mocinha, ofegante, tentava a expulsão.

A parteira, com grande maestria, conseguiu pegar o bebê e o puxou. Um choro iluminado de criança inundou o ambiente. A fadiga, a dor e o desespero deram lugar para a mais pura felicidade festejada com risos e gritos.

-É um lindo homizinho! Expressou a parteira, feliz por vencer mais uma barreira em sua divina missão.

Após limpar o bebê e cortar o seu umbigo dona Maria o entregou para a mãe. Ela, depois de tanto esforço ganhou uma beleza celestial nos olhos mirados em sua criaturinha.

Segundo a minha tia, no ano seguinte, (1957) no dia dezenove de agosto, eu também cheguei neste mundo pelas mãos da querida Maria parteira.

Infelizmente no ano de mil novecentos e cinqüenta e oito essa iluminada senhora veio a falecer. Mais tarde a região ganhou o seu primeiro hospital com maternidade, e mulheres como dona Maria parteira, verdadeiras mães universais, nunca mais foram vistas pelo Realengo dos anos cinqüenta. FIM