O MULATO PULQUÉRIO
Todos os dias, de segunda a sexta feira do ano de mil novecentos e sessenta e oito, o ar desolador do Realengo figurado num típico silêncio de subúrbio carioca com características de bairro imperial era interrompido pelo barítono apito da fábrica de cartuchos. Rotineiramente às dezessete horas em ponto os operários saiam ao mesmo tempo formando uma marcha descompassada rumo ao bicicletário em um canto do pátio externo. Em menos de cinco minutos as ruas de barro batido eram invadidas por dezenas ou centenas de pares de rodas em todas as direções. No meio de tantos operários pedalando havia um que se destacava devido à sua postura e seu jeito elegante de conduzir sua bicicleta Hércules. Seu nome era Pulquério. Antes de montar ele acendia um cigarro da marca Beverly e seguia majestoso, deixando no ar um leve rastro com a fumaça do tabaco.
Se não bastasse a sua pose ele também era muito zeloso com o seu veiculo. Vivia lustrando os pára-lamas cromados e ajeitando as duas flâmulas do Flamengo Futebol Clube, dependuradas no guidom. O farol com formato de funil e as lanternas traseiras eram movidos à energia de um dínamo fixado no aro da roda dianteira.
Pulquério era quase que um símbolo folclórico de sua época. Há vinte anos que fazia o mesmo trajeto. Quando deixava o serviço ia para a subida do viaduto da estação de trem que o meu avô ajudou a construir. Lá ele conversava com os motoristas dos carros pretos que faziam lotação. Depois pedalava até o bar do Ariovaldo, localizado na Rua Piraquara. Pulquério tomava uma dose de cachaça e jogava três fichas de sinuca. De noitinha ele tornava-se mais garboso, devido as ruas terem péssima iluminação ia pra casa com o farol e as lanternas acesas. Chegava em casa sempre às dezenove horas. Nunca se atrasou, assim também como o seu jantar, posto na mesa às dezenove e quinze em ponto. A bicicleta ficava no quintal, em lugar seguro e coberto. Quando Pulquério sabia do roubo de alguma bicicleta ficava furioso. -- Se pego um safado desse eu corto a mão dele! Seus olhos brilhavam.
Depois do jantar ouvia a voz do Brasil e finalmente a sua novela radiofônica. Mais tarde ia para o portão onde contava causos para a garotada. Na impostação rouca da sua voz dizia que Realengo era ponto de parada do Imperador quando este ia visitar a Marquesa de Santos. Falava também que em um velho casarão do morrinho do Jardim Novo, que guardava em seus porões instrumentos de torturar escravos, gritos de dor eram ouvidos à meia noite do dia treze de maio. Como fiel flamenguista relembrava os ídolos do passado e suas feituras futebolísticas.
No sábado a tarde Pulquério ia para os vários campos de várzea da Rua Capitão Teixeira e assistia as peladas coloridas. Já no domingo, de manhã, freqüentava o campo do Realengo Futebol Clube para vê-lo jogar.
Um certo dia Pulquério se descuidou e o pior aconteceu. Ele foi em uma carvoaria da Rua Belizário de Souza, Vila do Vintém. Estacionou sua bicicleta no meio fio e entrou no estabelecimento mas quando retornou não a viu mais. Quis desmaiar mas o ódio promovido pela cena o manteve de pé. Vasculhou todos os becos e nada. Vencido, retornou pra casa a pé e cabisbaixo. A noticia logo se espalhou.
_ Roubaram a bicicleta do Pulquério! Comentava a vizinhança. No dia seguinte Pulquério fez vários contatos e nada. No fundo ele sabia que jamais iria rever sua bicicleta que seria totalmente modificada. A tristeza foi dominando o seu espírito. Não foi mais trabalhar e na décima segunda falta deu entrada na aposentadoria. Ninguém mais viu o Pulquério que acabou se confinando em casa. Depois de dois meses sua família informou que estava doente. Mais três meses após essa noticia e veio outra pior, a moléstia de Pulquério o havia matado.
Mesmo não tendo leitura o mulato era o maior contador de estórias do mundo. Sentimos muito o seu desaparecimento. Algum tempo depois da morte do nosso contador de causos a fábrica foi desativada e Realengo, até os dias de hoje, vive o silêncio do apito imponente da extinta fábrica, como se fosse uma forma de prece em homenagem ao querido e amado mulato João da Silva Pulquério. FIM