OCASO
Severina Maria da Conceição nasceu no dia de São Severino dos Ramos, dia em que sempre havia festa em todo lugar, mas não para ela.
Enquanto menina e adolescente, jamais vestiu uma roupa nova, por causa da data.
Ninguém nunca lhe disse “Parabéns pelo seu aniversário”...
Nasceu e foi criada pelas cozinhas dos outros, onde a mãe sempre trabalhou sem folgas, sem férias, em troca de uns caraminguás que se pudesse chamar de remuneração.
Nunca foi a “empregada doméstica”, sempre “a criada”, aquele tipo de gente que mesmo sem fazer parte da família, ninguém se sente obrigado a pagar pelos serviços que faz e muito menos chamar para integrar o núcleo familiar que ajuda a manter.
Quando pequena era chamada de Biuzinha, depois que cresceu era Biu e agora, na velhice, dona Biu.
Analfabeta e sem documentos, viu nascer e ajudou a criar três gerações.
Num natal, de um ano qualquer, recebeu o primeiro presente.
*** Uma caixa de sabonete. ***
Foi o presente que papai Noel mandou entregar na noite em que, da cozinha, ouvia os sons da família jantando as iguarias que preparara com tanto carinho, além do peru recheado e da enorme travessa cheia de rabanadas que, “infelizmente”, não sobrou nem uma...
Não conheceu o amor de homens.
Amou loucamente o filho mais velho da casa, a quem entregou sua virgindade numa tarde de muitas promessas e nenhuma realização.
Depois a decepção e o silêncio, para não ser posta na rua.
Não tinha nem sabia para onde ir e o amor, como seu corpo, murchou com o passar do tempo.
Nas horas vagas, fazia agasalhos de tricô para os “de casa”, até quando a catarata permitiu.
Os serviços que antes fazia só, agora eram feitos por duas moças.
Numa noite de natal, depois do AVC que a deixara presa na cadeira de rodas e completamente cega de um olho, via com tristeza, através da névoa da catarata, serem entregues embalados com isopor, os pratos comprados prontos.
Dona Biu pediu para ser levada para o quarto, lá nos fundos da casa enorme, agora bem maior, depois que não podia ficar de pé.
Na penumbra do quarto, viu aparecerem pela porta entreaberta, duas cabecinhas que lhe olhavam com espanto.
Tentou falar com eles, mas a voz não saiu.
Ela sabia que eram os netos dos meninos que ajudara a criar.
Um deles disse:
- Isso aqui é a casa da bruxa má!
- E ela vai te pegar! (disse o outro)
E os dois saíram em desabalada carreira, deixando dona Biu só, no ocaso da vida.