Construção
Construção
por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)
Em um morro particularmente alto, ficava o bairro mais abastado da cidade, depois dele, seguindo pela avenida, já era possível ver um conjunto de casas regulares, beirando a padronagem se não fosse uma ou outra modificação feita pelos moradores. Alguns adicionavam sacadas às janelas, outros criavam outro andar sobre o que era a garagem e havia aqueles que juntavam novamente as casas geminadas criando um só casarão.
Dos poucos imóveis mudados, um se destacava pela falta de bom gosto. Uma caixa quadrada feita de cimentos e tijolos com três andares ainda sem pintura e janelas sem vidros. Uma pilha mal arrumada de areia logo na entrada indicava sua condição de estar ainda sendo construída. Logo que derrubaram duas casas recém compradas, uma ao lado da outra, os vizinhos já se perguntavam curiosos quem teria tanto dinheiro para derrubar tudo e começar do zero, depois de um ano de construção, nada foi respondido ainda.
Alguns diziam ter visto o dono inspecionar a obra, outros argumentavam que era o engenheiro que o fazia. Um dos moradores do final da rua, até procurou nos arquivos da prefeitura quem era o dono da localidade, porém os documentos ainda não alterados não traziam soluções para as questões.
Nessa semana nenhum pedreiro viera trabalhar, os burburinhos aumentaram, “É claro que não teria tanto dinheiro para bancar construção assim, se tivesse teria comprado casa no bairro alto que é mais cara.” Mas isso eram só suposições. Quando a casa ficara um semestre inteiro sem receber pedreiros, outro vizinho dissera algo sobre embargo de obra, coube novamente ao funcionário público checar e nada havia de errado. Porém desta vez não ficara de mãos vazias, a documentação trazia um nome: Guilherme de Andrade e Silva.
“Eu conheço a família dele, herdou toda a fortuna do pai e até hoje torra como se não houvesse amanhã!” disse um dos mais velhos moradores da rua, “Que nada! Esse é empresário bem sucedido que investe em imóveis, decerto achou outro investimento mais atraente.” argumentava outro. O fato é que todos puxavam sardinha para sua versão, sendo uma mais conspirativa que a outra.
Fato é que os pedreiros voltaram a trabalhar. Outra construtora. Mais narrativas de como a anterior dera um golpe em Guilherme ou que os prazos não foram cumpridos. Dois meses depois alguns pintores começaram o acabamento final da obra e esta foi deixada pronta. As pessoas aguardaram ansiosas pela vinda do morador, mas este não aparecia. Toda semana algum vizinho dizia que viu um caminhão de mudanças em frente a casa, mas nada acontecia.
Os boatos ficaram mais intensos. “É coisa de traficante!” decretou uma vizinha mais afoita que proibira seus filhos de brincarem em frente da casa. Algumas outras mães seguiram o exemplo com medo de ter suas crianças raptadas e ter os órgãos vendidos no mercado negro. Alguns sujeitos querendo bancar os durões, passaram a usar a casa como ponto de encontro esperando que a fama transferissem para eles. Teve uma noite que a polícia até revistara uns quatro rapazes mal encarados que sentavam em frente a porta, aumentando ainda mais as desconfianças dos moradores.
Entre a bandidagem a casa ficou conhecida por dar a língua nos dentes, coisa de traidor mesmo. Era só ficar em frente a casa que você corria o risco de se explicar na delegacia. Um dia uma viatura encostou na porta enquanto um policial iluminava a garagem com uma lanterna, uma das vizinhas logo disparou pelo telefone mesmo, para não perder tempo, “Os policiais estão pegando propina com o dono da casa!” Logo esse era o assunto geral da rua pela manhã.
Uma das mulheres que lá moravam, solteirona convicta e de muitas amigas, disse a torto e direito que não era um homem o dono, e sim uma mulher, e inclusive a visão dos demais vizinhos era muito machista a ponto de crer que o gênero feminino não era capaz de liderar uma “família do crime”. Assim que a palavra família veio a tona, um dos moradores balbuciou “máfia”.
A bagunça estava feita. Muita gente passou a economizar dinheiro para quando fossem extorquidos por algum mal encarado com uma cicatriz no rosto. Era só alguém passar de terno que as pessoas se escondiam em suas casas, a líder da gangue, tinha até nome agora: “Senhora Muerte”, inclusive matou o marido que havia comprado a casa, por isso que a construção ficou tanto tempo parada, era os advogados se mexendo pelas beiras da lei, lutando para que ela herdasse tudo.
Os meses se passavam com momentos de pouco e momentos de muito medo. Quando um famoso programa de reportagem na televisão falou sobre o tráfico de órgãos, tudo já estava acertado. Senhora Muerte usaria o casarão para retalhar, pessoalmente, suas vítimas e vendê-las no Canadá para endinheirados que precisam de transplantes.
Porém os moradores do sexo masculino estavam inquietos, não era possível que uma mulher fizesse tudo isso, essa história era invenção dessa vizinha que não gosta de homens. Passaram a dizer que era Guilherme sim o capo de tutti capi, supremo chefe do crime organizado tupiniquim e esse se parecia muito com o Marlon Brando no Poderoso Chefão. Era proibido as mulheres deles dizerem ao contrário e logo sua versão era difundida pelas senhoras que dispunham mais tempo de fofocar.
Então um caminhão de mudança parou em frente à casa. Caixas de papelão foram colocadas para dentro da garagem, recebidas por homens de macacão cinza. Um dos garotos passou por perto e pode ver com clareza o desenho de uma maca em uma delas. Correu para casa para alertar o pai que pegara o telefone, pronto para avisar a polícia, porém foi detido por sua esposa dizendo que se os denunciasse eles poderiam fazer mal a família.
A rua inteira ficou apreensiva. Um dos vizinhos sumira e todos temeram pelo pior, só descobriram depois que ele viajara, pois o bairro “estava envolto em muita tensão”.
Um belo dia pela manhã, a vizinha da frente viu uns rapazes com maçaricos em volta da casa, colocando algo na fachada, saiu pelo portão e se aproximou o máximo que pode. Alguns outros vizinhos vendo a coragem dela, também foram para a rua imaginando que expulsariam o traficante de órgãos a qualquer custo, porém o que viram era algo inusitado. Uma placa grande com letras azuis identificando “Ortodontia Sorriso Feliz”. Apesar de ficarem desconfiados, viram o Doutor Guilherme de Andrade Silva entregando pessoalmente os folhetos de sua clínica. Com eles vieram mais dentistas que alugaram as salas fazendo daquela um centro odontológico de primeira. Ninguém comentou nada, nem sequer mencionavam a clínica em suas conversas. Mas por precaução ninguém daquela rua jamais marcou consulta.