Maldita desilusão acerca de um par de coxas.

Naquela altura dos acontecimentos já me sentia indefeso e com medo. Uma porrada no escuro da vida. Havia alguns, ainda, que me curavam. Sem perceber eu entrava na dança errada, estava pouco me fodendo pra isso. Mas eu era confuso. Ser indefeso era amostra de falta de coragem e eu tava com medo ainda por cima. Cadê a lógica disso tudo? Medo maldito! Obrigaram-me a escrever isso. Era meu ofício.

Eu tinha acabado de escrever meu último livro. Mais uma aposta em mim mesmo. Fui beber pra comemorar numa choperia da cidade. Fomos eu e Braga. Esse cara era meu amigo há tempos e tinha uma conversa boa. A gente se entendia à sombra de qualquer assunto vago. Dessa forma vaga já fizemos planos sobre tudo que podíamos imaginar. Porra nenhuma foi pra frente. A gente era uma dupla de a toa, trabalhando em empregos que não éramos felizes, que não tínhamos nascido pra fazer, mas ainda assim o fazíamos. Ele e eu precisávamos pagar as contas, até porque o dinheiro das escritas não dava pra tudo. Eu não podia me dar ao luxo de viver pra escrever as coisas. Não tinha ainda as costas de ouro, nem era um bastseller. Acho que nem queria, e as pessoas que eu admirava não aprovariam isso, mesmo que me renderia mais sossego pra largar aquela droga de emprego.

Braga era um publicitário meio solitário e beberrão. Inteligente, lia tudo que podia, mas não escrevia nada. Era péssimo pra fazer isso, assim como dar conselhos. Eu já tinha desistido dele pra esse quesito. Ele não falava coisa com coisa, tentava ser bacana, dar qualquer toque, mas no fundo não sabia fazer. Era um lobo a espera de uma donzela apaixonada. Assim destruíra muitos corações. Como amigo entendo seu motivo: ele não queria os corações. Ele já tinha se decepcionado uma vez e prometera não acontecer de novo. Jurava amor eterno a todas as damas e jurava que ia se casar em Machu Pichu. Ele era inteligente o bastante e tinha umas idéias legais, embora não saíssem do papel. Se tivesse a devida chance ia fazer fortuna nesse mundo das publicidades. Era preguiçoso e seus olhos denunciavam isso. Mas isso era bom pra mim, porque enquanto fosse assim ainda freqüentava bares comigo. Ele sabia que só precisava era de mais uma dose de qualquer coisa, de algo pra explodir um cara novo. Um cara simpático e rabugento.

Pedi uma vodca com gelo. O rapaz do bar se assustou e disse:

- Cara, é só o primeiro drink. Toma algo mais tranqüilo.

- Se tomar algo mais ‘tranquilo’ eu durmo . Prefiro então beber lexotan. Dá um barato. Pelo menos liga uma música lá, rasga um blues. Ah, e, por favor, não vai por água nessa vodca – disse sorrindo.

O rapaz obedeceu com estilo, ligou B. B. King. Já sentia a vodca na garganta com a mesma intensidade em que B. B. King se contorcia nos solos de guitarra. Braga delirava. Era do tipo de cara que sempre andava com uma gaita no bolso. Era pra impressionar as damas. Dito e feito.

Sem que pudéssemos perceber tinham algumas mulheres em volta da mesa. A gente já era batido nesse tipo de bar, estávamos sempre lá. Bebíamos, falávamos porcaria, saiamos com uma mulher cada um. Ninguém entendia o que elas queriam com dois caras tristes assim. “Será que era falta de amor próprio?”. Pensei algumas vezes. Não: a gente não tava nem ai, e elas muito menos.

Nessa noite, ela se aproximou e sentou-se na cadeira ao meu lado. Era linda de morrer. Debruçou como quem tinha assunto de sobra nas mangas, como quem senta pra dar luz a uma na filosofia à beira da morte. Que medo dela, que medo daquela beleza toda. Mas eu tinha assunto, vodca e o resto da noite para desvendar aqueles mistérios. Me afundar naqueles cabelos longos.

Braga se levantou e disse que ainda era cedo e precisava conhecer gente – mulheres, é claro. Fez sinal para todas na mesa e elas o seguiram. Precisava me deixar sozinho. Ele fazia isso pra ver se encontrava alguma que lhe desse um murro dolorido na cara e o acordasse pra fugir daquela vida de merda que ele vivia e fosse à luta. Ele era bom demais e merecia mais. Acrescentou:

- Cara, to indo ali. Preciso ver se consigo deixar as coisas mais polêmicas.

Deixou-me sozinho ali com aquela estranha. Eu queria mesmo era que fosse estranha, isso não importava. Eu já a imaginava longe dali, comigo.

Foi assim que conheci Alice. Ela tinha uns anos a mais que eu, talvez uns sete – infelizmente, essa diferença não era mental. Ela parecia uma criança num corpo de mulher. Uma linda mulher, a propósito. E era alegre, sorria, tinha a certeza do bom humor. Eu era atrapalhado e, às vezes, engraçado também. Era humano. Ela podia ser feliz com qualquer coisa que a vida lhe empurrasse garganta a baixo. Eu não. Só podia ser feliz a duras penas. Mas essa garota me fazia bem. E eu até toparia dançar com ela - isso mesmo, eu dançando! Coisas estranhas que acontecem com a gente numa loucura qualquer, principalmente, quando se está apenas em busca de umas pernas bonitas. Alice era mediana em altura, devia ter um e sessenta e pouco. Quase um e setenta. Loira, mais pra castanho, tinha grandes lábios vermelhos e os traços do rosto eram delicados. Era branca demais, não pálida. Vestia-se na moda, sempre com roupa colada ao corpo e alguns poucos acessórios. Na medida. As coxas eram grossas, as canelas também – certa vez ouvi uma história sobre moças com canelas grossas, bela comédia humana. Tinha um defeito não previsível, nem o maior, mas era um defeito: pés feios. Nada é perfeito. Mas pra minha sorte sempre estava com sandálias salto alto, o que era uma maravilha.

Fomos pra casa dela. Ela falava sem parar, falava de tudo. Percebi que tinha um certo tipo de receio de que eu pudesse não gostar do assunto dela. Pensei comigo: “eu não quero casar com você, pode falar a vontade.” No alto da madrugada em que a conheci já sabia quase tudo da sua vida. Ela era frenética. Depois fui perceber que era frenética em tudo mesmo. Nessa noite enquanto conversávamos bebemos muito. Lhe impressionei com alguns drinks que sabia. Ela me fazia sorrir, gargalhar. As mulheres não tinham muito esse poder comigo. Não sei o que ela tinha, nem queria descobrir ainda. Acordei pelado no sofá dela. Ela estava ao meu lado, exprimida. Meu relógio apontava seis horas da manhã. Tentei, em vão, lembrar das coisas que aconteceram depois das gargalhadas. Mas pelo jeito que eu acordei as coisas tinham sido boas, com certeza. Levantei, me vesti, sem que ela percebesse e me mandei pra minha casa. Deixei um recado com meu numero de telefone e um breve poema que só elogiava suas coxas. Um Ode as Coxas, talvez. Saí dali sabendo que a veria de novo. E queria.

Cheguei em casa e senti um cheiro de café lá da porta. Por um segundo imaginei que tinham invadido minha casa, mas lembrei que era o Braga. Até porque era sábado. O cara tinha a chave da minha casa e, praticamente, vivia ali. E bebia café o tempo todo. Ele me contou que tinha saído com uma tal de Amanda, sei lá. Mas que ela era meio estúpida e tarada. Ele odiava mulheres sem personalidade. Assim que terminou com ela decidiu vir pra minha casa pintar. E lá estava a bela xícara marrom estilo surrealista sobre a minha sala. O desenho era bom pra caramba, era diferente, sem cores. Reproduzia uma imagem singela e poética. E o desenho se misturou com o cheiro do café no ar. Não sabia se era de propósito, uma espécie de nova arte, mas era linda. Quase chorei. Mas olhei pra ele e sorri. Perguntei como que ele ainda não ganhava uns trocados com aquilo.

Naquela manhã não dormi nada. Mas pensei muito em Alice. Não sabia o que havia acontecido comigo naquela noite. Fiquei pensando se ela estava também pensando em mim e se já tinha lido algum livro meu, se ela ligaria. Não parecia eu de verdade. Conversei bastante com Braga ali na sala de manhã. Contei-lhe tudo que tinha acontecido, disse que ela era bacana, mesmo sendo estranha e meio boba. Ele me analisou o tempo todo, sem dar conselhos. Por fim terminou mais uma xícara de café, me olhou e disse:

- Cara, você se apaixonou por aquelas pernas.

Eu não contestava, talvez ele tivesse razão.

Alguns dias se passaram, as coisas corriam como normal. O emprego me deixava de mau humor. Eu não sabia fazer planilhas de nada e passava horas contabilizando um dinheiro que não era meu. Cheguei, uma vez, a tentar calcular quantas cópias de livros eu conseguiria reproduzir apenas com o dinheiro de uma semana. O ofício me fazia pensar numas coisas estranhas. Eu misturava a realidade daquela completa falta de identidade com a vontade da minha vida. Por sorte era sexta-feira. Alice ligou naquele dia, queria sair e me ver. Fiz-me um pouco de difícil, mas não muito a ponto dela desistir. Marcamos no mesmo bar. Lá estaríamos eu e Braga mais a noite.

Braga levou Bianca, nossa amiga há tempos também. Éramos amigos de longa data e nos conhecíamos por completo. Era o que havia sobrado da nossa turma do passado. Os dois já tinham se bicado algumas vezes, mesmo sendo amigos assim. Sempre que estavam a sós saíamos, e os dois se paparicavam e se xingavam, mas acabavam na cama. Essa era a coisa boa de nossa turma: não havia culpa, nem ciúme de homem e mulher, nem falta de amor. A gente se amava e morria um pelo outro.

Eis que o ponto alto da noite aconteceu. Alice chegou como quem desfilava. Usava uma saia curta, não mini, mas curta. Uma blusa branca colada ao corpo por dentro, o que lhe deixava ainda mais perfeita. Desfilava também com um salto alto preto. Tinha os atributos físicos mais perfeitos. E estava com as coxas aparecendo. Nem de longe os atributos físicos eram os mais importantes numa mulher. Mas com Alice o conjunto me deixava louco. Chegou com aqueles olhos verdes, sentou-se ao meu lado e me beijou de supetão. Eu só podia estar apaixonado por aquela frenética. Era o começo dos próximos cinqüenta e dois dias de alegria.

Alice e eu nos falávamos todos os dias, nos encontrávamos sempre. Foi assim que, aos poucos fui tentando lhe fazer gostar de algumas coisas – ou melhor, tentar. Habito antigo esse meu de querer modificar minhas mulheres. Eu lhe recitava poesias e falava sobre música. Sobre tudo que gostava e queria que ela se interessasse. Eu percebia que ela não era uma pessoa muito esperta e nem se ligava nisso. Ela tinha a juventude na mente e queria levar isso à diante. Por fim, nunca leu nenhum livro que lhe indiquei, nunca ouviu minhas músicas, nunca se interessou por sonhar os sonhos que eu e Braga tínhamos. Não tinha porque também ela perder seu tempo com coisas frustradas. Descobri com Alice que, às vezes, uma mulher precisa de um homem menos embriagado, menos triste. Eu tinha senso de humor, mas era sarcástico e sombrio. Foi assim por cinqüenta e dois dias, me lembro bem.

Esse dia começou quando Alice levou Fernando pra sair com a gente. Ela dizia ser um amigo de fora que estava na cidade e que queria se divertir. Fomos todos juntos. O cara parecia um garoto propaganda de algum comercial qualquer. Era boa pinta, tinha uma conversa horrível e parecia-se demais com Alice. Eles conversavam e se entendiam. Eu não achava de tão mal, porque assim ela não me enchia com suas ladainhas. Ela começou a me irritar a partir do momento que não tínhamos mais assuntos. Eu nunca dizia o que ela queria ouvir e ela muito menos me dizia algo que eu poderia interessar. Por eu não falar ‘coisas legais’ ela achava que era porque eu ainda era mais novo que ela. Isso me incomodava demais: que pensamento vadio. Nosso assunto era na cama. Percebi que Alice já tinha se relacionado de alguma forma com Fernando e que ele não estava ali por acaso. Ela iria embora mais cedo ou mais tarde, me trocaria. Bela troca. Não sei por que eu ainda insistia nela. Eu gostava dela, do jeito dela.

Nossa situação estava cada dia mais chata, piorou depois que Fernando apareceu, porque ela não falava em outra coisa senão nele. Por sorte eu nunca fui de me importar muito com as coisas, nem com os atos das mulheres. Eu apenas amava todas elas. Elas tinham um cheiro bom e eu me perdia nelas. Esse era o ponto: eu me odiava demais e amava demais as mulheres, por isso aos poucos destruía qualquer possibilidade de amor que alguém tivesse por mim. Apesar de tudo eu sabia que ainda iria escrever sobre Alice, eu era obrigado a isso, era meu ofício. Eu tinha medo de entrar na dança dela e ao mesmo tempo não me importava com isso. Eu era confuso e isso ajudava com a falta de coragem. Não deu outra: ela foi embora com ele, havia me trocado. Deixou-me um bilhete assim como eu lhe deixei na primeira noite. Dizia assim:

“Querido L., fui embora e você sabia que isso ia acontecer. Você queria se testar, só não soube como lhe dar com tudo isso no final. Você foi um grande amante, e só. Você nunca foi impenetrável. Não vou lhe deixar meu telefone. Saiba que você foi o ‘casual’ mais bonito e filho da mãe que eu conheci. Ah, e não se engane comigo, eu li seus livros. Amo suas letras. Se vire com elas e cuide das suas futuras mulheres, seja menos covarde. Essas são as coisas com o que você mais precisa se preocupar: a escrita e as mulheres. Ambas são sempre boas, mas você se desfaz delas.

Não me ligue. Alice.”.

Será que eu tinha era medo disso? De ser rejeitado uma vez? De receber de uma mulher totalmente as avessas de mim algo que eu sempre fazia com todas elas? Por isso até hoje Alice me preocupava? Era uma vingança planejada por um conjunto de mulheres rejeitadas pra acabarem comigo? Talvez fosse isso. Por esse mesmo motivo Alice me inquieta até hoje, eu me perdi na lógica dessa história toda. Eu precisava escrever sobre ela e sobre a merda que ela fez comigo. Ela me deu aquelas pernas maravilhosas e depois se retirou de mim como quem sai no meio do filme porque já conhecia a história que ela própria tinha planejado.

Antes de tudo tivemos uma conversa em casa. Ela me dizia já puta da vida com a nossa situação:

- Não tá dando certo, né?

- Não – eu dizia já entendendo que não era pra ficarmos juntos.

- Começamos bem. Só durou até hoje por causa do sexo.

Eu sabia que ainda ia escrever sobre ela também por outros motivos: eu gostava dela porque era sincera ao extremo. Fodia com a minha vaidade. Que medo de ainda a reencontrar por ai, de me ver nos olhos dela. De ver o figurão que eu sou e lembrar que ela me imitou com maestria. Havia algo mais, só não sabia o que mais me dava aquela sensação insuportável, aquela certeza de querer escrever sobre ela.

Depois de tudo estávamos eu e Braga em casa bebendo e conversando sobre nossas coisas. Eu bebia mais porque parecia triste e, como sempre, tentava deixar de lado o desenrolar das histórias. Não me intrigar, pensar como aquele que nunca foi apegado a nada e se sentia fora de qualquer senso de moral. Eu precisava manter a dignidade do caos. Naquela noite não havia o cheiro de café do Braga, nem de mulheres, havia um silêncio na alma.

- Você sabe que eu ainda vou escrever sobre ela, não sabe? – Perguntei.

- Claro. – Braga respondeu se levantando pra aumentar o som.

- Eu não sei como vou fazer, eu sei também que vou me perder na história, porque não se trata de uma história de amor, nem de ódio. Eu tinha era carinho por ela. Vou me perder! Tem que haver algo mais...

- Vai nada, cara. Quer mais uma vodca? – Perguntou desviando o assunto, afinal ele nunca soube dar bons conselhos. Mas me conhecia e eu entendia com os olhos.

Naquela noite entre amigos o som era legal e se ouvia “You Can’t Always Get What You Want”, Rolling Stones. O silêncio realmente mostrava, como na música, que a gente não tinha sempre o que queria. Naquela noite eu tinha Braga e aquela vodca misturada com vida que ela trazia na mão. Nossas vidas não eram sobre mulheres, desilusões, putarias, empregos malditos, artes e sonhos. Era alguma coisa mais humana, mais íntima. Era sobre vida. Sobre alguma coisa que faltava, sobre a sinceridade mais profunda de quem está no vazio e procura um lar seguro. Resolvemos escolher aquela vida e a encenar porque sabíamos que havia lirismo no meio daquele coloquial todo. E com uma vodca numa das mãos, uma injeção de ânimo na outra Braga chegou até mim, colocou uma de suas mãos sobre meu ombro, me olhou com aqueles olhos sinceros e lançou sobre mim o melhor conselho de toda sua vida:

- Eu te conheço, e sabe por que você vai escrever sobre ela?

Continuei olhando fixamente pra ele e o ouvi acrescentar:

- Porque o que faltava, no fundo, é que isso se trata de uma história sobre coxas. Malditas coxas!

L Figueiredo
Enviado por L Figueiredo em 14/08/2011
Reeditado em 27/02/2012
Código do texto: T3160359
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