Memorial do desespero

Ela correu. Acordou tarde para aquele compromisso, era demasiado tarde [talvez]. Trocou seu pijama de bolinhas verdes por uma roupa, dita normal, penteou o cabelo como sempre fazia: 22 escovadas para a direita, 11 para esquerda, tentando deixar parelho.

Aquele desespero a tomava conta. Foi dormir tarde, pensando nas palavras erradas a dizer, nas ações erradas a proceder. Procedia.

Era um misto de loucura e tédio. Não tomou café, preferia ir sonolenta, assim acalmava seus demônios internos e pareceria mais apática no encontro. Deveria ser assim, ele odiava seres humano apáticos, sobretudo ela que lhe era sempre atenção e carinho. Ele precisava vê-la assim, senão nada daria certo e ela acabaria voltando atrás na sua decisão.

Embarcou no ônibus apinhado, gesticulou ao motorista um “bom dia” frenético. Sentou e reensaiou as frases. Ela estava decidida a terminar, sentia que era aquilo que deveria ser feito, já não tolerava mais certas coisas como toalhas molhadas, fotografias recortadas, escritos não revelados, louças não lavadas. Três anos de detalhes que a consumiam.

Ela chegou no lugar, aquele velho café de sempre, sentou no lugar de sempre, pediu o de sempre, esperou ele atrasado, como sempre.

Ele já estava mais de 15 minutos atrasado, já era demais. Estava um dia atípico, há duas quadras dali havia uma multidão por perto, devia ser algum artista de rua, sempre havia esse tipo por ali.

Trinta minutos, ela já ensaiava lágrimas de raiva. Ele havia passado de todos os limites. Ela decidiu ir embora, não fazia mais sentido estar ali. Pegou as suas coisas, pagou seu café, sentia que nunca mais iria vê-lo.

Quando sai do café, resolve passar em frente à multidão e ver o que estava acontecendo, muitos curiosos, pouca ajuda. O viu deitado naquela esquina, com uma flor na mão, a que ela mais gostava. Descobriu realmente o que era sentir desespero. Um carro, uma pessoa, um lugar, uma queda, um fim. Ali, deitado já quase sem vida, ela aproxima-se, já entre lágrimas e arrependimento. Sentiu seu corpo balançar, ajoelhou-se, ouviu suas últimas palavras. Três ultimas palavras. Eu... te... amo. Entregou-lhe a rosa que seu sangue já avermelhava, suspirou num sorriso e fim.

Hoje ela sente falta de toalhas molhadas, ele não estava mais em fotografias recortadas, a louça estava lavada... E ele? Não mais deixava tudo tão imperfeitamente perfeito.

Desespero.