Caiu o tempo

Caiu o tempo!, dizia o louco. E dizia firme, feito aviso, sem gritar.

Todo dia ele repetia o espetáculo de doido. Tinha como palco a praça e como platéia a gente da praça, uma platéia de riso fácil. Ninguém dela sabia de outras palavras naquela boca insana, escutavam tão somente o anúncio de que o caiu o tempo e isso bastava para provocar risadas.

O louco era a figura de um velho, desbotado pelo tempo e pelo descaso, que não chamaria a atenção nunca não fosse o dizer incomum e sem sentido.

Como para dar mais ênfase ao que ia dizendo, ele apontava o chão pertinho do pé de quem passava próximo, na rua ou calçada, e então, com ar sério, alertava: caiu o tempo!

Por que apontava o chão de uns e não de outros, também ninguém sabia. Apenas discutia-se, menos por interesse que por zombaria, quantas vezes em um só dia o velho assistia, testemunha solitária, a queda do tempo.

E deviam ser muitas as vezes.

Numa delas, caiu o tempo no chão de uma moça que ainda beirava os vinte. Caiu o tempo!, apontou. Já que louco, pipoqueiro, vendedor de picolé, e ainda alguns transeuntes, a olhavam com expectativa, sentiu-se um tanto vexada. Como saída sorriu com ironia – Cada um!, pensou – e assim recobrou a arrogância da idade.

Noutra vez, um homem num terno apressado, calçando sapatos indiferentes, teria pisado em cima do tempo caído. Não pisou porque não ouviu o louco nem tomou conhecimento da queda do tempo. Prosseguiu sua marcha; e com a mesma indiferença de antes, o sapato fazia o ruído rítmico e seco ao bater na calçada.

Ainda, em outra vez de tantas vezes, foi nos pés de uma criança que o tempo resolveu cair. Caiu o tempo!, indicou o louco. Curiosa e viva, a criança ainda buscou nos pés o tempo caído ou algo que parecesse com isso. Antes que pudesse encontrar sentiu um puxão pelo braço, era a mãe repetindo, anda, menino, anda!

E o tempo continuava a cair. Queda sem fim, entulhando a calçada, a rua, a praça. O velho louco não desistia de alertar; sequer mudava a ordem das palavras e nem mesmo entonação. Convicto em seu aviso mantinha a firmeza. Porém se isso era um esforço para ter mais atenção, de nada adiantava; não havia quem desistisse de ignorá-lo.

Porém, certo dia, uma única vez, alguém desistiu.

Caiu o tempo!, disse apontando o chão. Caiu o tempo?, o homem retrucou; a pergunta foi sincera e curiosa. Um tanto ensimesmado, o louco deixou de apontar para o chão sem com isso interromper o olhar preciso e acusatório da queda do tempo. Como resposta à pergunta fez um modesto gesto afirmativo com a cabeça, só. O homem que até parara para perguntar – caiu o tempo? – entendeu ter sido encerrada a explicação e voltou a andar seu caminho.

Ele, o homem, andando evitava olhar ao redor para não confrontar os risinhos do pipoqueiro, do vendedor de picolé e também de alguns transeuntes. Todos achavam graça de sobra alguém dar corda para o louco da praça. O homem evitou olhá-los. Esse homem - meio poeta, meio suicida - evitou ainda olhar para dentro, lá no fundo, nas curvas da memória, esse lugar onde os remorsos e os desejos se fundem em completa solidão para morrerem de saudade. Evitou notar a queda do tempo que o assolava já havia muito tempo.