Sílvia morreu

Sílvia morreu

por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)

Então, ela morreu. Fazia tempo que andava mais do lado do barqueiro do que dos vivos. Caso fosse culpada de um só fato, poderíamos falar, sem qualquer dúvida, que a bebida a matara.

Sílvia. Sílvia era o nome da mulher. Trinta e poucos anos, mas com jeito de pessoa que passou pelos cinquenta há um bom tempo. Nas ruas por onde andava trôpega era chamada apenas de negrinha, não nesse tom pejorativo típico de crianças mal-educadas, pois soava até carinhoso, principalmente quando vindo de seu amor, Vivi.

O nome dele poucos sabem, a única certeza é a sua moradia, uma casa sem telhados feita juntando entulhos de toda sorte. Conhecido pelos vizinhos pela sua educação, algo difícil de imaginar por culpa de preconceitos que todos nós temos. Seus cabelos grisalhos revelam poucos fios ainda loiros, o boato que corre à boca pequena indica uma descendência ucraniana ou de qualquer outro país considerado exótico para nós tropicais.

No dia depois da morte de Sílvia, Vivi ainda remoía em seu cachimbo, além do fumo, a saudade de sua preta. Como ele amava aquela mulher. Nos últimos dias, a danada dera de adotar uma pomba que pousada em seu ombro andava de um lado para o outro como companhia. Era difícil saber quem mais sofrera maus tratos, a ave ou a mulher. O bicho com sua pata dilacerada por linha de pipa ainda se recuperava enquanto recebia carinho de Sílvia. Era raro ver as duas separadas, quando ganhavam uma bolacha ou biscoito de polvilho, elas repartiam a comida, Silvia sentada na guia e a pomba sobre seu colo. Triste e comovente ao mesmo tempo.

O único lugar que a pomba não entrava era no bar. Parece que sabia o que o destino reservava para sua amiga. Ao menor cheiro de álcool, a ave já voava para longe. Ficava em cima de uma casa sem moradores em frente ao bar esperando Sílvia ficar sóbria. No dia seguinte, quando a ressaca tomava conta, a pomba pousava entre as sustentações do telhado e esperava Sílvia acordar de seu sono alcoolista. Quando abria o olho, a pomba já se aninhava em seu colo buscando aconchego.

O fumo de corda queima lento no cachimbo de madeira escura. Uma lágrima desce pelo rosto do velho Vivi. Era uma das poucas mulheres que ele amou. No fundo de uma garrafa de aguardente um restinho de depressão descansando. Vivi toma de uma só vez e segue até o velório.

Espera o ônibus um bom tempo sob o sol até que o transporte aparece. Ele senta em um dos bancos e os outros passageiros saem de perto, talvez pelo cheiro de pinga impregnado em suas roupas. Vivi olha para suas mãos sujas de trabalho. Alguns vizinhos o pagavam em troca de levar entulho ou aparar o mato que cerca os quintais. Além disso, há muito que sentem dó e entregam dinheiro por boa caridade para um necessitado. Suas unhas pretas tamborilam no banco em vão à procura de sossego.

O velório é visível quando Vivi desce do ônibus. Suas botas puídas tocam o asfalto e o calor lhe fere os pés, com calma ele percebe um furo grande em seu calçado, quando tiver tempo ele fará uma palmilha de papelão para não mais sentir dor. O prédio em que o velório ocorre é decadente, paredes descascadas e pintura que já viu muito choro e vela. Em uma sala ladrilhada, se vê um pequeno grupo, Vivi se aproxima, porém nem reconhece sua mulher.

“Ei, Vivi, é por aqui!”, grita um rapaz do outro lado indicando o caminho certo. Sete pessoas. Amigos de bar não são bons companheiros para ir a um velório. Preferem a calma do bar e o conforto da pinga. O silêncio predomina. Ninguém sabe ao certo se dá condolências ou reflete sobre a cirrose que consumiu Sílvia, de qualquer modo, a mudez torna-se o novo paletó.

Todos estão sentados e Vivi acha logo seu lugar e passa a contemplar seus próprios pés. O terno surrado de cor marrom proveniente de uma doação da igreja precisara apenas de uns poucos remendos. Alguns nem se vestiram para a ocasião, desfilando de camisetas furadas e bonés de eleição. Triste fim de Sílvia.

Um dos amigos trouxe por precaução uma garrafa de boa aguardente, o lacre rompe e o líquido desce amargamente feito realidade pela garganta, o vizinho do lado vê e faz gestos com a língua como se também precisasse. Em seguida, a bebida passa de mão em mão.

A primeira acaba e um deles mendiga um trocado no velório vizinho e outra garrafa é comprada. Mais uma termina. A terceira é rateada com o troco do ônibus de todo mundo e quase o responsável não volta do bar tamanha a bebedeira em que se encontrava para comprá-la.

Quando percebem todos estão bêbados chorando pela morte de Sílvia. “Ela era mulher de verdade”, anuncia Vivi. “Bebia feito macho”, declamava um dos colegas. “Sua perda deveria se tornar feriado nacional”, proclamava outro. As horas transcorriam e eles continuavam a beber a morta, alguns já dormiam ao lado do esquife emprestado da prefeitura, outros achavam falta de educação ser derrubado pela bebida em um velório e, corajosamente, permaneciam se embebedando.

No fim, sobrou Vivi de pé, acariciando a face de sua companheira morta. “Pretinha, por que você me deixou?”, reclamava sentindo o peso da injustiça a lhe corroer o estômago. Ela não poderia responder mais. Vivi imaginava se havia algum lugar reservado no céu para pessoas que nem eles, pobres cidadãos frutos da desigualdade e arrastados para a fuga rápida da bebida. Dragados para longe de suas famílias que agora apenas atravessavam a rua quando os viam. Deveria haver algum lugar para os fracos de espíritos como eles, e nele Sílvia encontraria sua paz. Poderia abraçar novamente sua mãe que morrera do mesmo mal, conheceria, talvez, seu pai que lhe abandonou quando ainda era bebê. Poderia, enfim, enxugar suas lágrimas no colo do Senhor.

Um resto de consciência ainda sobrara na garrafa. Vivi toma de um só gole e enxerga os servidores do velório vindo levar sua mulher, ele desperta seus amigos para um esforço final. Cada bêbado com sua alça de caixão levando vagarosamente a caixa pelas ruas tortas do cemitério. No final de uma ruela de barro pisado, o buraco daqueles que não tiveram identidade, família ou dinheiro. Sílvia juntará seus restos mortais a outros como ela, vidas destruídas por vícios ou falhas. Daqui alguns anos, a exumação revelará que tanto eles como os que puderam ter um jazigo próprio são feitos da mesma matéria. Não terá como diferenciá-los. O corpo é posto em uma vala comum.

Todos dão as mãos e rezam uma oração entrecortada e chorada. Doída no peito daqueles que sabem que a vida é frágil e sem sentido. Aos poucos, os corpos são cobertos por terra e nenhuma marcação é colocada, ninguém quer lembrar qual o seu último paradeiro. Logo a terra cobre o que as lágrimas teimavam fazer. Todos sentam perto da sepultura e acabam com mais uma garrafa ou duas, algo difícil de contar nesse estado.

Vivi toma as doses restantes e acaba deitando. Ele morre engasgado com seu próprio vômito. De longe, a pomba de Sílvia pousada sobre o telhado do prédio alça voo sem destino certo.