O MEDO COMO OPÇÃO
Não. Não me chame assim. Nem remotamente me compare. Não me chamo espírito e nem consciência. Também não sou um dos fantasmas de Scrooge e nem um algoz do tempo. Sou apenas alguém que passou da idade e que possui sonhos inacabados.
Também não sou mesquinha a ponto de guardar apenas para mim as doces observações de anos de fantasia solitária. Muito pelo contrário. Quero compartilhá-las. É uma forma de revivê-las.
Passei anos infindáveis sentada atrás de uma mesa fornecendo e recebendo livros. A cada volume ofertado, a cada devolução diária eu procurava os olhos e além deles um brilho, uma descoberta, uma oportunidade.
Olhos passavam. Iam e vinham. Jamais em nenhum momento qualquer um deles me viu como eu queria ser vista.
Passei então, a buscar o refúgio das mãos a cada romance recebido ou levado. E na fragilidade de sentimentos que jamais ousei revelar, esbarrei em dedos, toquei peles, senti o calor e o frio, a maciez e também a aridez de toques... Que nunca foram meus... Que nunca foram para mim.
Os meses passaram e meu sorriso sempre latente e ansioso de outros sorrisos, congelou no tempo e como plantas em um vaso velho decaiu até o ponto de parecer tristeza.
Mas a tristeza é uma mera ilusão. Não há tristeza onde nunca houve alegria. Esta certeza imutável era conhecida e cômoda e com ela aprendi a conviver. Teria sido fácil se nada tivesse acontecido. Teria sido mecânico e corriqueiro se em uma tarde chuvosa uma dimensão paralela e desconhecida não tivesse sido aberta. No meio das prateleiras da minha resignação, quando eu já virava incondicionalmente as páginas da minha história, um sorriso aconteceu. Não era um sorriso comum e nem tampouco perdido ou despertado pelas linhas lidas. Era dirigido, focado, deslumbrado e oferecido para mim que olhava atônita aquela manifestação emotiva que nunca antes me foi ofertada. E naquela tarde improvável, diante do inusitado, eu que até então me desconhecia, me revelei. E como uma brisa etérea, um sopro diáfano ou uma imagem fugidia, captei o rosto que me sorria e em êxtase sorri de volta. Nos dias seguintes, vestida de ansiedade brilhante e expectativa colorida voltei timidamente à vida. Esperava angustiada pelo volume emprestado a ser devolvido, aguardava ofegante o momento do encontro entre as estantes e sorvia embriagada o ar mútuo que circulava entre os livros e você. E os dias foram passando e com eles crescia em minha alma a urgência de um toque, o som de uma palavra ou o vislumbre de uma promessa. Jamais ousei vôos mais altos ou longínquos. Jamais exigi de você o milagre, mesmo que breve, de uma vida em comum. Em nenhum momento ousei chamá-lo de meu apesar de acalentá-lo noite adentro em meus pensamentos e divagações.
Um dia o sorriso sumiu, os olhos se voltaram e meu desejo, faminto, absurdo e órfão foi abandonado rasgado e ferido no chão.
Outro par de olhos foi de encontro aos seus, uma nova boca sorriu para você que encantando ensaiou o beijo que sempre habitou meus sonhos. E no abismo da minha dor, vi os dedos frágeis e rápidos que se tocaram no encaixe perfeito. E nada mais foi meu. E nada mais me restou. E onde antes habitava uma alegria pulsante mora agora a frieza da verdade. A verdade de que nunca fui forte o suficiente para também ler nos romances a possibilidade concreta de sentir. A constatação de que durante todos estes anos eu tive uma chance, mas me contive, me tolhi e me recolhi nas amarras da minha própria covardia. E nos meses posteriores, a cada vez que você me visitava e me olhava sem ver por trás da mesma mesa, eu repetia estas palavras vazias tentando convencer a mim mesma que tudo não passou de um delírio da minha solidão. Quando a noite chegava e todos os livros estavam guardados, eu apagava a luz da cena incompleta, ia para casa, beijava aqueles que se diziam meus e aguardava ansiosa a visita do dia seguinte. Um dia elas também cessaram. Um dia eu desisti de esperar e hoje quando percebo que o tempo que nunca julguei me pertencer está no fim, deixo estes escritos para você. Não os julgue como a cobrança de alguém desconhecido. São memórias de alguém que amou errado, passou na vida e acordou tardiamente para os inúmeros sorrisos que sempre existiram, mas que nunca foram notados.
Não. Não me chame assim. Nem remotamente me compare. Não me chamo espírito e nem consciência. Também não sou um dos fantasmas de Scrooge e nem um algoz do tempo. Sou apenas alguém que passou da idade e que possui sonhos inacabados.
Também não sou mesquinha a ponto de guardar apenas para mim as doces observações de anos de fantasia solitária. Muito pelo contrário. Quero compartilhá-las. É uma forma de revivê-las.
Passei anos infindáveis sentada atrás de uma mesa fornecendo e recebendo livros. A cada volume ofertado, a cada devolução diária eu procurava os olhos e além deles um brilho, uma descoberta, uma oportunidade.
Olhos passavam. Iam e vinham. Jamais em nenhum momento qualquer um deles me viu como eu queria ser vista.
Passei então, a buscar o refúgio das mãos a cada romance recebido ou levado. E na fragilidade de sentimentos que jamais ousei revelar, esbarrei em dedos, toquei peles, senti o calor e o frio, a maciez e também a aridez de toques... Que nunca foram meus... Que nunca foram para mim.
Os meses passaram e meu sorriso sempre latente e ansioso de outros sorrisos, congelou no tempo e como plantas em um vaso velho decaiu até o ponto de parecer tristeza.
Mas a tristeza é uma mera ilusão. Não há tristeza onde nunca houve alegria. Esta certeza imutável era conhecida e cômoda e com ela aprendi a conviver. Teria sido fácil se nada tivesse acontecido. Teria sido mecânico e corriqueiro se em uma tarde chuvosa uma dimensão paralela e desconhecida não tivesse sido aberta. No meio das prateleiras da minha resignação, quando eu já virava incondicionalmente as páginas da minha história, um sorriso aconteceu. Não era um sorriso comum e nem tampouco perdido ou despertado pelas linhas lidas. Era dirigido, focado, deslumbrado e oferecido para mim que olhava atônita aquela manifestação emotiva que nunca antes me foi ofertada. E naquela tarde improvável, diante do inusitado, eu que até então me desconhecia, me revelei. E como uma brisa etérea, um sopro diáfano ou uma imagem fugidia, captei o rosto que me sorria e em êxtase sorri de volta. Nos dias seguintes, vestida de ansiedade brilhante e expectativa colorida voltei timidamente à vida. Esperava angustiada pelo volume emprestado a ser devolvido, aguardava ofegante o momento do encontro entre as estantes e sorvia embriagada o ar mútuo que circulava entre os livros e você. E os dias foram passando e com eles crescia em minha alma a urgência de um toque, o som de uma palavra ou o vislumbre de uma promessa. Jamais ousei vôos mais altos ou longínquos. Jamais exigi de você o milagre, mesmo que breve, de uma vida em comum. Em nenhum momento ousei chamá-lo de meu apesar de acalentá-lo noite adentro em meus pensamentos e divagações.
Um dia o sorriso sumiu, os olhos se voltaram e meu desejo, faminto, absurdo e órfão foi abandonado rasgado e ferido no chão.
Outro par de olhos foi de encontro aos seus, uma nova boca sorriu para você que encantando ensaiou o beijo que sempre habitou meus sonhos. E no abismo da minha dor, vi os dedos frágeis e rápidos que se tocaram no encaixe perfeito. E nada mais foi meu. E nada mais me restou. E onde antes habitava uma alegria pulsante mora agora a frieza da verdade. A verdade de que nunca fui forte o suficiente para também ler nos romances a possibilidade concreta de sentir. A constatação de que durante todos estes anos eu tive uma chance, mas me contive, me tolhi e me recolhi nas amarras da minha própria covardia. E nos meses posteriores, a cada vez que você me visitava e me olhava sem ver por trás da mesma mesa, eu repetia estas palavras vazias tentando convencer a mim mesma que tudo não passou de um delírio da minha solidão. Quando a noite chegava e todos os livros estavam guardados, eu apagava a luz da cena incompleta, ia para casa, beijava aqueles que se diziam meus e aguardava ansiosa a visita do dia seguinte. Um dia elas também cessaram. Um dia eu desisti de esperar e hoje quando percebo que o tempo que nunca julguei me pertencer está no fim, deixo estes escritos para você. Não os julgue como a cobrança de alguém desconhecido. São memórias de alguém que amou errado, passou na vida e acordou tardiamente para os inúmeros sorrisos que sempre existiram, mas que nunca foram notados.