FÉRIAS COM O TIO ALFREDO
TRECHO BASEADO NO LIVRO À SOMBRA DO IMBONDEIRO DE ANTONIO MARCELO
Cenário:Bragança,cidade de Tràs-os-Montes,Portugal.Eu interno num colégio em Lisboa
Que me recorde, passei férias de Natal com meu Tio Alfredo quatro vezes, dos 11 aos 14 anos de idade. Ele me tratava como um adulto que merecia toda a sua atenção. Como pai de família, seguia a mesma linha dura que norteava seu pai, meu avô. O ambiente naquela casa era de medo e extremo respeito.
Tinha herdado de seu pai a marcenaria e as habilidades manuais que faziam dele o melhor restaurador de móveis antigos da cidade e região. Era altamente considerado por sua postura de homem sério e honesto. Tinha herdado também o carro fúnebre da cidade. Bem, não era um carro motorizado como os de hoje, que mais se assemelham a luxuosas limusines, mas um carro com quatro grandes rodas, empurrado à mão. Quem tratava de transportar os mortos era o Henrique.
A casa onde eles viviam era também herança do meu avô, pai de onze filhos ali nascidos, entre os quais, minha mãe. Dos onze só sobreviveram cinco, o que era normal naquela época.
A casa não tinha banheiro . Para as necessidades físicas usavam-se grandes penicos brancos de ferro esmaltado, que ficavam nos quartos. Mas comigo era diferente. Eu dormia no quarto de meus avós, que desde a morte de meu avô, só havia sido usado por meus pais. Era enorme, com móveis trabalhados por meu tio em estilo, que eu diria ser rococó, um trabalho digno de escultor. Por cima da cômoda dispunham-se uma jarra com água, uma bacia e uma saboneteira. No chão, um penico. Essas peças eram de louça produzida em Vista Alegre, a fábrica mais famosa de Portugal e uma das mais conceituadas no mundo. Os desenhos, pintados à mão, eram de cores suaves e muito bonitas. Hoje sei que tais utensílios eram manifestação de riqueza.
Era esse conjunto que eu usava para me lavar e fazer as necessidades. Mais tarde, minha tia substituiu o penico por um igual ao que eles usavam e que, embora não apresentasse um visual tão delicado, era mais alto e confortável. Tinha uma tampa com um buraco no meio.
Não obstante a essas regalias, meu tio permitia que eu mexesse nas ferramentas da marcenaria. Como era irrequieto, tentava fazer alguns objetos em madeira.
Assim fiz amizade com seus três empregados, principalmente o mais antigo e graduado, o Ezequiel. Ele me ensinava a trabalhar com o formão, a plaina, a serra e demais ferramentas. Um dia resolvi fazer uma mesa e quatro cadeiras em miniatura. Como me esforcei para executar a tarefa que tinha imposto a mim mesmo! Quanto mais cortava, plainava, serrava e lixava a madeira, mais longe estava de terminar o meu trabalho. Acabei recorrendo ao Ezequiel, que estava sempre muito ocupado. Ele sorriu. Em minutos transformou o que era um esboço malfeito de móvel, em uma linda mesa com quatro cadeiras. Limitei-me a fazer o acabamento com verniz. E todos elogiaram os meus dotes e minhas habilidades. Fiquei calado. Ezequiel também.
Meu tio, como toda a gente que habita a gelada, fria e inóspita Trás-os-Montes, era bom bebedor de vinho. Portanto, tendo sido promovido a amigo e camarada de meu tio, não era de estranhar que ele me servisse vinho como se um homem fosse. E eu nunca quis, nem por leve sombra, contrariar suas expectativas. O período reservado para beber começava na hora de jantar. Havia um ritual: Henrique ia à adega, que ficava do outro lado da rua, e trazia um garrafão de mais ou menos três litros de vinho. Meu tio servia-me, servia minha tia e depois se servia. Meus primos eram simplesmente excluídos de saborear esse precioso néctar.
O jantar era na cozinha, junto à lareira. Não me lembro o que comia, mas recordo-me perfeitamente que a refeição só terminava quando o garrafão ficava vazio. Era o momento de tio Alfredo e eu nos despedirmos da tia para tomarmos café na praça central, sempre no mesmo café. Meu tio vestia o lindo sobretudo que minha mãe lhe havia oferecido. A figura diurna de marceneiro vulgar se transformava num homem elegante, à altura dos mais respeitados da cidade. Os frequentadores do Café eram pessoas do alto escalão da sociedade bragantina, que o cumprimentavam e a quem ele fazia questão de me apresentar.
E lá vinha o costumeiro café com conhaque. Ele não bebia aguardente porque a considerava muito forte. A estada e a conversa eram rápidas porque outro programa melhor nos esperava. Era uma taberna, bar simples onde só se servia vinho e onde outro tipo de pessoas o esperava: gente simples e humilde, que o tratava como amigo e com todas as deferências que personagem de tão alta estirpe merecia. Pedia um copo de vinho e mais outro. Eu não o acompanhava, talvez por não gostar do vinho ou porque estivesse no limite de minha capacidade de absorção alcoólica.
A conversa lá corria solta e animada; falavam de terceiros, dos que estavam doentes e dos que não estavam, comentávamos os últimos escândalos da cidade e outras miudezas de interesse momentâneo, até chegar a hora de ir para casa.
Não diria que estivéssemos senhores de nossa inteira capacidade intelectual, mas como andávamos a pé e o trânsito era praticamente nulo, íamo-nos arrastando até chegarmos em casa. Só que alguma coisa de diferente acontecia: em vez de entrarmos na porta de casa, entrávamos numa porta do outro lado da rua, a da adega. Esse era um local que, viva eu uma eternidade, nunca sairá de minhas lembranças mais profundas e risonhas. Com o isqueiro, meu tio quebrava a escuridão para alcançar a lâmpada pendurada, que acendia quando ele a atarraxava. Nunca vi uma lâmpada clarear tão frouxamente, mas a luz era suficiente para enxergarmos as pipas, os dois copos que ele passava sob a água da torneira, um presunto pendurado, uma faca grande e uma porção razoável de teias de aranha.
Começava então a última, mas não menos excitante parte da noite. A partir dali, qualquer gota de vinho que entrasse em nossos corpos, seria o excesso do excesso. Mas isso acontecia, e nós dois nos envolvíamos em altos papos, filosofando sobre nossa amizade, o relacionamento dele com a restante família, seu pai, a personalidade dos Carvalhos, etc.
Numa dessas noites, quando eu ia-me sentar, ele me impediu e sentenciou orgulhosamente:
-Um Carvalho quando bebe, fica sempre em pé!
Entendi a mensagem embutida no que dizia: “Quando um bêbado se senta, não consegue mais se levantar.”
Atravessávamos a rua, abraçados. Ele me chamava de irmão. Eu subia um lance de escadas para chegar ao meu quarto e, ele, dois. A escada que já era íngreme sem alto teor alcoólico, naquele estado parecia uma escalada ao Himalaia.
A cama acolhia-me debaixo de espessos cobertores e um botijão de água quente, que minha querida e saudosa tia colocava para que eu não sentisse a rudeza do frio, mal supondo que meu corpo estava mais quente que a botija.
E dormia um sono pesado do qual só acordava para almoçar. Que delícia, meu Deus! E que fígado, que rins eu tinha nessa época.
Depois minha tia me perguntava, com sorriso maroto, como tinha sido a noite e me contava que às seis da manhã meu tio já estava a trabalhar como se nada tivesse acontecido.
TRECHO BASEADO NO LIVRO À SOMBRA DO IMBONDEIRO DE ANTONIO MARCELO
Cenário:Bragança,cidade de Tràs-os-Montes,Portugal.Eu interno num colégio em Lisboa
Que me recorde, passei férias de Natal com meu Tio Alfredo quatro vezes, dos 11 aos 14 anos de idade. Ele me tratava como um adulto que merecia toda a sua atenção. Como pai de família, seguia a mesma linha dura que norteava seu pai, meu avô. O ambiente naquela casa era de medo e extremo respeito.
Tinha herdado de seu pai a marcenaria e as habilidades manuais que faziam dele o melhor restaurador de móveis antigos da cidade e região. Era altamente considerado por sua postura de homem sério e honesto. Tinha herdado também o carro fúnebre da cidade. Bem, não era um carro motorizado como os de hoje, que mais se assemelham a luxuosas limusines, mas um carro com quatro grandes rodas, empurrado à mão. Quem tratava de transportar os mortos era o Henrique.
A casa onde eles viviam era também herança do meu avô, pai de onze filhos ali nascidos, entre os quais, minha mãe. Dos onze só sobreviveram cinco, o que era normal naquela época.
A casa não tinha banheiro . Para as necessidades físicas usavam-se grandes penicos brancos de ferro esmaltado, que ficavam nos quartos. Mas comigo era diferente. Eu dormia no quarto de meus avós, que desde a morte de meu avô, só havia sido usado por meus pais. Era enorme, com móveis trabalhados por meu tio em estilo, que eu diria ser rococó, um trabalho digno de escultor. Por cima da cômoda dispunham-se uma jarra com água, uma bacia e uma saboneteira. No chão, um penico. Essas peças eram de louça produzida em Vista Alegre, a fábrica mais famosa de Portugal e uma das mais conceituadas no mundo. Os desenhos, pintados à mão, eram de cores suaves e muito bonitas. Hoje sei que tais utensílios eram manifestação de riqueza.
Era esse conjunto que eu usava para me lavar e fazer as necessidades. Mais tarde, minha tia substituiu o penico por um igual ao que eles usavam e que, embora não apresentasse um visual tão delicado, era mais alto e confortável. Tinha uma tampa com um buraco no meio.
Não obstante a essas regalias, meu tio permitia que eu mexesse nas ferramentas da marcenaria. Como era irrequieto, tentava fazer alguns objetos em madeira.
Assim fiz amizade com seus três empregados, principalmente o mais antigo e graduado, o Ezequiel. Ele me ensinava a trabalhar com o formão, a plaina, a serra e demais ferramentas. Um dia resolvi fazer uma mesa e quatro cadeiras em miniatura. Como me esforcei para executar a tarefa que tinha imposto a mim mesmo! Quanto mais cortava, plainava, serrava e lixava a madeira, mais longe estava de terminar o meu trabalho. Acabei recorrendo ao Ezequiel, que estava sempre muito ocupado. Ele sorriu. Em minutos transformou o que era um esboço malfeito de móvel, em uma linda mesa com quatro cadeiras. Limitei-me a fazer o acabamento com verniz. E todos elogiaram os meus dotes e minhas habilidades. Fiquei calado. Ezequiel também.
Meu tio, como toda a gente que habita a gelada, fria e inóspita Trás-os-Montes, era bom bebedor de vinho. Portanto, tendo sido promovido a amigo e camarada de meu tio, não era de estranhar que ele me servisse vinho como se um homem fosse. E eu nunca quis, nem por leve sombra, contrariar suas expectativas. O período reservado para beber começava na hora de jantar. Havia um ritual: Henrique ia à adega, que ficava do outro lado da rua, e trazia um garrafão de mais ou menos três litros de vinho. Meu tio servia-me, servia minha tia e depois se servia. Meus primos eram simplesmente excluídos de saborear esse precioso néctar.
O jantar era na cozinha, junto à lareira. Não me lembro o que comia, mas recordo-me perfeitamente que a refeição só terminava quando o garrafão ficava vazio. Era o momento de tio Alfredo e eu nos despedirmos da tia para tomarmos café na praça central, sempre no mesmo café. Meu tio vestia o lindo sobretudo que minha mãe lhe havia oferecido. A figura diurna de marceneiro vulgar se transformava num homem elegante, à altura dos mais respeitados da cidade. Os frequentadores do Café eram pessoas do alto escalão da sociedade bragantina, que o cumprimentavam e a quem ele fazia questão de me apresentar.
E lá vinha o costumeiro café com conhaque. Ele não bebia aguardente porque a considerava muito forte. A estada e a conversa eram rápidas porque outro programa melhor nos esperava. Era uma taberna, bar simples onde só se servia vinho e onde outro tipo de pessoas o esperava: gente simples e humilde, que o tratava como amigo e com todas as deferências que personagem de tão alta estirpe merecia. Pedia um copo de vinho e mais outro. Eu não o acompanhava, talvez por não gostar do vinho ou porque estivesse no limite de minha capacidade de absorção alcoólica.
A conversa lá corria solta e animada; falavam de terceiros, dos que estavam doentes e dos que não estavam, comentávamos os últimos escândalos da cidade e outras miudezas de interesse momentâneo, até chegar a hora de ir para casa.
Não diria que estivéssemos senhores de nossa inteira capacidade intelectual, mas como andávamos a pé e o trânsito era praticamente nulo, íamo-nos arrastando até chegarmos em casa. Só que alguma coisa de diferente acontecia: em vez de entrarmos na porta de casa, entrávamos numa porta do outro lado da rua, a da adega. Esse era um local que, viva eu uma eternidade, nunca sairá de minhas lembranças mais profundas e risonhas. Com o isqueiro, meu tio quebrava a escuridão para alcançar a lâmpada pendurada, que acendia quando ele a atarraxava. Nunca vi uma lâmpada clarear tão frouxamente, mas a luz era suficiente para enxergarmos as pipas, os dois copos que ele passava sob a água da torneira, um presunto pendurado, uma faca grande e uma porção razoável de teias de aranha.
Começava então a última, mas não menos excitante parte da noite. A partir dali, qualquer gota de vinho que entrasse em nossos corpos, seria o excesso do excesso. Mas isso acontecia, e nós dois nos envolvíamos em altos papos, filosofando sobre nossa amizade, o relacionamento dele com a restante família, seu pai, a personalidade dos Carvalhos, etc.
Numa dessas noites, quando eu ia-me sentar, ele me impediu e sentenciou orgulhosamente:
-Um Carvalho quando bebe, fica sempre em pé!
Entendi a mensagem embutida no que dizia: “Quando um bêbado se senta, não consegue mais se levantar.”
Atravessávamos a rua, abraçados. Ele me chamava de irmão. Eu subia um lance de escadas para chegar ao meu quarto e, ele, dois. A escada que já era íngreme sem alto teor alcoólico, naquele estado parecia uma escalada ao Himalaia.
A cama acolhia-me debaixo de espessos cobertores e um botijão de água quente, que minha querida e saudosa tia colocava para que eu não sentisse a rudeza do frio, mal supondo que meu corpo estava mais quente que a botija.
E dormia um sono pesado do qual só acordava para almoçar. Que delícia, meu Deus! E que fígado, que rins eu tinha nessa época.
Depois minha tia me perguntava, com sorriso maroto, como tinha sido a noite e me contava que às seis da manhã meu tio já estava a trabalhar como se nada tivesse acontecido.