Cidade Grande
São seis horas da tarde e a noite já vem caindo. Vou pela calçada desviando de quem caminha na direção contrária. Passos apressados, vontade de chegar logo, sair do barulho irritante das ruas. O caminho é conhecido, é rotina; não só minha, mas de uma porção de pessoas. Pelo olhar fatigado e camisa marcada pelo suor, sei quem volta de um dia cheio, dia de trabalho; pelo perfume fresco e maquiagem delineada sei quem ainda está só na metade dele. Algumas roupas ainda denunciam mais sobre quem as veste; ora passo por um mecânico, depois um grupo de colegiais, então um mendigo. Certas vestimentas são indecifráveis e por isso só gosto das fáceis, dos estereótipos que todo mundo espera por encontrar na rua.
Não sei o nome dessas pessoas, mas isso de início isso é fonte de diversão. Brinco de adivinhar qual nome elas teriam. Depois de um tempo você descobre que são poucos nomes conhecidos para muitas pessoas desconhecidas, e acho que por isso me obriguei a decorar alguns rostos, fixá-los com nomes únicos que não dou a mais ninguém. Torno-os conhecidos íntimos de uma história por acontecer.
Chego a mais uma esquina. Esperando o sinal fechar para que possa atravessar a rua me junto ao amontoado de pernas que tem a mesma espera que a minha. No meio dos outros vejo um instante que provavelmente nunca mais vai se repetir, não com aquelas mesmas companhias. E ninguém dá a mínima pra singularidade da coisa, só eu. Idiota. Do outro lado, vindo de onde eu estaria logo que superasse mais aquela rua, percebo a Fernanda. Um nome que achei combinar bem com o jeito dela. Parecia uma pessoa querida. Dava até para imaginar um namorado ou irmão menor chamando-a carinhosamente de Nanda.
Ela estava com passos curtos, rápidos. Estranhei vê-la ali. Geralmente eu a teria encontrado quatro quadras antes, perto da pichação abstrata feita no muro - uma grande sombra negra, toda torta, meio humana, de olhos desproporcionais em um rosto sem boca nem nariz, provocando todos os transeuntes com a pergunta: você se enche de várias coisas e ainda continua vazio?. A julgar pela pressa que a Fernanda vinha e pelo seu aparecimento tardio no meu caminho, só podia estar atrasada para a universidade ali perto. Estuda Turismo pela noite e carrega orgulhosa sua bolsa estampada com o logotipo da universidade e do seu curso. Sei que é caloura já que só com o início das aulas desse semestre é que eu a notei e tivemos nossos caminhos cruzados. Agora ela está a poucos metros, continua com pressa. Dou um oi silencioso em pensamento, sou ousado. ‘Oi, Nanda, fico feliz em te ver aqui!’. Apelido e elogio, quem sabe assim ela sorria e se preocupe menos com o atraso. Não. Apenas passou por mim, sequer me fitou. Estava com muita pressa.
Chego ao meu destino diário, um encontro marcado com a padaria. É meio lanchonete, parte confeitaria, um pouco também de casa de sucos, mas no letreiro sobre a porta está escrito que é padaria. Não importa, o que eu como mesmo é um prato feito. Enquanto espero a comida reparo como o local está movimentado. Sempre é assim. Pratos batendo, latinhas de refrigerante sendo abertas, um liquidificador que não para. E um monte de vozes. Um burburinho que carrega sempre um rolo de falas em fragmentos de conversas, em pedidos de cafés, bolos e salgados. Mas tento ignorá-las. Com o fim dos nomes que posso imaginar, eu me foco apenas nas vozes que eu consigo classificar separadamente debaixo de um substantivo próprio inventado por mim.
Assim o Paulo estava lá, sem o Pedro; imagino que tenham brigado, o que é estranho. Sempre comiam juntos ali, combinando em camisetas pretas de alguma banda de rock que não conheço, em cabelos típicos de musico rebelde batendo no meio das costas, e combinavam ainda nos gostos quanto a música em si – confesso que certa vez ouvi com atenção especial a conversa dos dois. Aposto que o Paulo foi quem criou a confusão toda. Ele sempre era o que mais falava, mais fazia caras e bocas; de espanto, admiração, de ironia. E eu sei que emoção demais sempre causa confusão.
Na porta acaba de cruzar Rita. Moça simples em tudo. Com um jeito gozado, parece que todo seu rosto foi feito tendo em conta um contrato com duas cláusulas: que os olhos, a boca e o nariz não chamariam, nenhum deles, mais atenção do que seus vizinhos podiam chamar, e de que por isso mesmo seriam todos muito comuns. É, ela tem o rosto mais comedido e simples que alguém pode imaginar, e isso lhe dava uma graça especial. Aquele rosto podia muito bem esconder um complicado mistério e estar só disfarçando. Mas aí é especulação. Só sei que Rita sempre ficava ali na porta aguardando o seu namorado, um sujeito que nunca fui com a cara e por isso se chamava Maldonato. Usavam aliança de compromisso e tudo. Era uma satisfação assistir os dois se encontrando. Ela parada na porta, ansiosa, então eis que um sorriso de criança lhe surgia ao rosto, daí bastava olhar pela janela para ver que do outro lado da rua vinha Maldonato. Apesar da minha birra contra ele, admito que sua felicidade ao ver Rita também causava satisfação a qualquer espectador. Mas aí certa semana nenhum dos dois apareceu. Na próxima, só ela veio; sem anel, sem esperar na porta, sem Maldonato. 'Você merece algo melhor, Rita. Ele não prestava', pensei comigo na esperança dela ouvir. Agora, já sentada, ainda sozinha, e tão simples de rosto, a observo e volto a repetir em silêncio que ela merece coisa melhor.
Uma risada irrompe no ambiente, vem do balcão. José, policial fardado, algumas mechas grisalhas no cabelo, solteiro, provavelmente solitário. Ele ri forçosamente para a garçonete, Silvia, mãe de dois filhos pequenos que às vezes apareciam por lá na volta da escola. Silvia não ria muito. A julgar pelas suas olheiras e dedos sem anéis, eu sei que é uma mãe solteira, sem nem vinte e cinco anos na cara, que sustenta sozinha sua prole. Consigo imaginar ainda uma mãe, já velha, que Silvia também tem que sustentar. Não sei se José patrulha essa área ou só vem aqui graças a um misterioso encantamento que sente por Silvia, mas é claro que sempre tem tempo livre para gastar sua criatividade com piadas na tentativa de fazer com que ela sorria. Em vão. Ele sempre ri sozinho e vai embora sozinho; Silvia tem a cabeça em outro lugar e a boca não prova há tempos um riso gostoso.
Por fim a comida chega e eu mastigo tudo. Depois fico mais um tempo. Sentado, olho os outros com discrição. Por aqui ninguém gosta de ser olhado. Ao ritmo de um carro que buzina, ou então por alguma freada brusca no alucinante trânsito ali fora, mudo o foco, alterno a pessoa. Se eu bobeio um pouco, me distraindo demais com alguém, acabo perdendo o momento exato em que uma outra pessoa vai embora deixando uma mesa vaga prestes a ser ocupada. Eu me sinto mal nessa hora. Bobeira, eu sei. Mas é o momento em que outras caras, com outras rotinas, vão chegar e não terei nome algum para elas. É também sinal de que o turno da Silvia chegou ao fim e que ela vai para casa cuidar dos filhos, deixando José com o que pensar quando for patrulhar as ruas novamente enquanto arquiteta novas piadas para o dia seguinte. Sinal ainda de que Rita vai tocar sua vida fora dali e sem o Maldonato – esse que eu nunca mais vi ou verei de novo. É o prenúncio da ida de Paulo, músico sem par. Lembro, nessa hora incômoda, até de Fernanda. Será que ela chegou a tempo ou o professor deu uma bela bronca pelo atraso?
Decepcionado, vou embora. Concluí que preciso de mais alguns nomes para me salvar da multidão anônima. Tentando encontrá-los a caminho de volta para casa, torno a ver alguns rostos que reconheço. Não são muitos, mas os vejo. Em meio à agitação do centro da cidade, reparo que debaixo do intrigante caos de concreto, dos motores e das tribos, há uma pequena ordem. Fico um pouco mais feliz por me convencer disso, e a cada rua que me aproximo de casa sinto-me menos perdido do que estava há um instante atrás. Sei que essa sensação pode continuar a crescer, mas sei ainda que ela vai ser interrompida tão logo eu me atrase ou tenha que mudar de caminho, pois aí todo o mundo gira vertiginosamente num borrão sem sentido, permanecendo intacta somente aquela pichação no muro, sempre provocante. Provocando especialmente a mim, eu sinto. Por isso detesto atrasos e mudanças de caminho. Não gosto de ter que romper essa rotina, meu elo frágil com a ordem que são esses estranhos conhecidos que povoam minha vida cimentada. Estranhos que possuem nomes que talvez não sejam aqueles que escolhi e que talvez amanhã nem sejam mais nada.