Charada e Augusto
A estrada parecia interminável. Os dois caminhavam já há algum tempo. Começaram andando sobre os trilhos. Mas sabiam que ia durar pouco. Era só brincadeira. Agora saltavam os dormentes. Recusavam-se a andar pelo trechinho em terra que separava os trilhos da vegetação. Trem parece que nunca vinha. Teriam a tarde toda pra continuar caminhando. Não teriam como comprar cerveja, cigarros ou chicletes. Também não era disso que precisavam. Precisavam conversar. Mas não sabiam sobre o quê. Talvez depois que o primeiro trem passasse. Sobre a prova que tinham acabado de fazer já haviam falado bastante.
Não pensavam também que pudessem se cansar. Talvez tivessem feito um pacto individual que nenhum dos dois desistiria na frente do outro. A aposta, competição é algo comum entre as pessoas. Ambos sabiam disso. E o trem nunca vinha. Vai ver que a estrada estava desativada. Mas continuava com a sua beleza notória, a possibilidade de conduzir pessoas ao seu destino de uma forma menos neurótica ou traumática (nunca pneumática, é claro) que o carro. Ambos concordariam com isso.
- Como é que viemos parar aqui?
- Tá maluco, cara? Ou tá de sacanagem?
- A gente andando por essa estrada deserta... Logo contigo, que nem conheço direito.
- Ihhh..., mêrmão, pirou? A gente acabou de fazer uma prova. Pros Correios.
- Sei disso. Mas por que a opção por esse caminho?
- Não lembra que falaram que não tinha mais ônibus? Que só se a gente chegasse na próxima estação de trem?
- Mas deve ser longe paca.
- E daí, tá com pressa?
- Até que não. Até que tô achando legal.
- Legal o quê? Ficar saltando os dormentes?
- Mas não é só isso. Tem a paisagem, que é diferente, árvores, passarinhos... Há quanto tempo não vejo uma árvore.
- Mas sabe o que é, num é?
- Claro, mas ver bem de perto é diferente.
- Já te ocorreu que daqui a pouco vão pintar um monte de barracos?
- Como é que tu sabe?
- Normalmente é o que ocorre. E se pintar alguma sujeira, malandro, tá preparado pra correr?
- Se der, a gente vaza, né?
Charada e Augusto se aproximaram de uma curva e ironicamente ouviram alguns estampidos. Só podiam ser tiros. Pularam para o mesmo lado da linha, mas foi possível notar que dois homens saíram correndo de dentro do mato, há uns trinta metros de onde estavam, empunhando cada um uma arma. Felizmente, sem olhar para trás, os homens armados afastaram-se, embora no mesmo sentido em que eles vinham.
Ficaram alguns minutos parados e sem dizer palavra. Tratava-se de uma cena pouco comum em suas vidas.
- Um negro e um moreno, cara. Será que viram a gente?
- Acho que não. Senão talvez tivessem vindo conferir.
- Ainda bem. Alguém tombou ali na frente.
- Tá a fim de ver?
- Pra quê? Tá a fim de confusão?
Depois que tiveram certeza de que os dois homens tinham se afastado completamente e que não seriam vistos, os dois continuaram a caminhar. Assustados, mas precavidos, deram logo com um trilha que conduzia a um barraco a uns vinte metros da linha férrea. Pareceram ouvir uns gemidos.
- E aí, cara? Tem alguém gemendo lá dentro ou tô ouvindo demais?
- É, parece que sim.
- Vamos dar uma olhada?
- E se tiver alguém com ele?
- Num deve ter. Nego aprontou e vazou.
- Pó, cara. Tô sentindo cheiro de confusão. É melhor deixar rolar.
- Num dá, cara. Não posso ouvir uma pessoa gemendo e não fazer nada. Ainda mais quando parece que não tem ninguém na área. Fica aí que eu vou verificar.
- Negativo. Vou contigo.
Aproximaram-se cautelosamente. Os gemidos eram mais intensos agora. Um barraco rústico, com cobertura em folhas de zinco, uma porta e uma janela lacrada por fora com dois pedaços de madeira pregados em forma de X. Curiosamente situava-se entre uma árvore frondosa, que não puderam identificar, e uma goiabeira.
A porta estava entreaberta. Lá dentro encontraram um homem de meia idade, os cabelos começavam a ficar grisalhos. Recostado na parede fronteira à porta, gemia e respirava pesadamente. Os olhos fechados. Um filete de sangue escorria-lhe pela camisa na altura do abdome.
- Cara, fica aí que vou buscar uma ambulância.
- Como? Tem hospital por perto não.
- Teu celular?
- Já esqueceu que proibiram a gente de lavar pra prova?
- Tudo bem. Vou lá na rua pegar um táxi.
- Vê aí, mêrmão. Não vou poder ficar o tempo todo aqui.
Conseguiram levar o homem ferido até à calçada. Com a ajuda e compreensão do motorista de táxi, a quem prometeram uma boa recompensa além do valor da corrida, os dois levaram o homem de meia idade ao pronto socorro mais próximo. Explicaram ao motorista que se tratava de um tio deles que fora vítima de uma bala perdida na favela em que morava. A mesma história contariam ao policial de plantão no pronto socorro.
O homem foi atendido e não corria perigo de vida. Os dois tiros de que fora vítima, na verdade um deles de raspão, milagrosamente não lhe afetaram regiões vitais. Charada e Augusto, depois que tiveram essa informação e de se identificarem junto ao policial de plantão, retiraram-se, alegando compromissos de trabalho, com a promessa de voltarem mais tarde.
Algum tempo depois da retirada de Charada e Augusto, quando ainda se restabelecia na enfermaria, o homem grisalho foi reconhecido por Verônica Azambuja, que visitava sua mãe, no pronto socorro com suspeita de fratura no fêmur. Dormindo profundamente ele não pode notar no rosto da jovem estudante a imediata expressão de surpresa ao vê-lo.
- Mãe, não é o professor Armindo ali naquela cama do canto?
- Não sei, menina. Você nunca me falou de nenhum professor Armindo.
- Falei, sim. É que sempre me refiro a ele como o Professor de Religião lá da escola. O que houve com ele?
- Parece que foi bala perdida. Dois tiros.
- Nossa, meu deus! E ele, está bem?
- Não corre perigo. Não foi grave. Foi Deus, porque os tiros foram na barriga.
- Ah, que legal. Uma pessoa tão boa. Tenho falado muito nele, sim. Todo mundo gosta dele lá na sala. É uma liderança incontestável. Ninguém faz bagunça. Até o pessoal ligado ao movimento tem o maior respeito e assiste aula numa boa.
- Agora sei quem é. Aquele que, através de você, conseguiu que a gente fosse se afastando da igreja.
- Isso mesmo, mãe. E nos levou a que desistíssemos de comprar uma casa nas nuvens pra que nela morássemos depois de nossa morte. E nos mostrou tantos outros excessos que a gente não conseguia enxergar.
- Ele é o que você também chama de Professor da Consciência. Realmente até eu tenho me ligado em coisas que não via. Dizem que agora o pobre pode comprar coisas que só a classe melhor tinha, que a inflação está contida. Mas o que a gente vê na rua é o preço de tudo subindo, o aluguel por hora da morte e o atendimento médico é isso que temos aqui. Até esparadrapo e gaze faltam.
- Agora entendo. Bem que falavam que uns caras de carro andavam rondando a porta da escola. E que uma vez perguntaram pelo Professor Armindo. Isso não deve ter sido bala perdida, mãe.
- Ih, menina, é mesmo? Então foge disso aí.
- Tô fora. Claro que não vou me meter. Mas lembro até que falaram que os caras de carro tinham ligação com uma certa igreja. Nem quis saber se era a nossa.
Charada e Augusto chegaram em suas casas bem tarde naquele dia. Moravam em bairros afastados. Teriam que fazer nos próximos dias alguma economia para compensar o que haviam gastado com aquela inesperada corrida de táxi. Mas não tinha sido em vão. Haviam trocado telefones.
- Fala aí, Augusto.
- Tranqüilo, Charada?
- Tudo. Agora parece que sim. Fizemos uma boa ação hoje.
- É, mas tu não tava muito a fim, no início.
- É verdade, mas depois cheguei junto.
- Tá certo. Aí, vamos ver depois se a gente marca um dia pra sentar e tomar umas cervas por aí. Até pra lembrar da aventura.
- Vamos, sim. Numa boa. Só que não bebo. Mas te acompanho;
- É mesmo, cara? Tu é bíblia?
- Nada disso, maluco. E nada contra. É que tenho problema de glicose.
- Ah, tudo bem. Sem problemas. O que importa mesmo é a presença. Te ligo então depois, valeu?
- Valeu, amigo. Se souber de alguma coisa dos correios, me avisa. E eu se souber, te aviso também.
- Valeu, irmão.
Os dois passaram no concurso dos Correios. Mas teriam que esperar pelo menos um ano para serem chamados.