NA CELA COM GENET

FOI A FISSURA. A MERDA DA FISSURA. Quando ela bate, você deixa de ser quem você é para se tornar o próprio vício.

Levantei-me num salto e fui fuçar cegamente nas gavetas dela; por sobre os móveis, penteadeiras, emcima da geladeira, nas bolsas, por trás dos retratos dos ancestrais, e por fim, na Bíblia. Lembrei que ela costumava guardar os trocados da feira dentro da Bíblia. Fui certeiro nela: Deuteronômio, capítulo IV, pag.169. "Vinte paus. Como não? Quatro paradinhas de cinco". Guardei a nota reluzente no bolso da calça. Aquilo não era roubo, não. Era uma apropriação. Ponderei.

"Vais sair, Jean? A noite tá feia." Advertiu ela.

"Vou, mas não demoro." Disse. Peguei um livro qualquer na estante do quarto. Dentro dele guardaria o flagrante. Ganhei o portão rumo ao "Quarenta". Nove e pouco da noite. Chuviscava. Caminhei algum bocado sobre o asfalto constipado. "Urgencia do vício. Viciado sim, pra quê negar? Não se fabrica um viciado, se nasce um viciado. Esse lance de meio é balela. Quatro paradinhas de cinco e pronto. Bom demais. Ramos Ferreira pela Costa e Silva." Um turbilhão de coisas martelando minha cabeça. Uma viatura passou por mim devagar, com suas luzes girando. Na entrada do "Quarenta", balancei como um pêndulo. Esta só. Mas decidido. Á medida que ia adentrando as entranhas dos becos, ia sentindo medo. Pianinho que era pra não fazer merda. "Becos e mais becos, a miséria é cheia de becos. Todos estreitos, cercados de casas de madeiras olhando-me de esguelha. As pontes caladas, estendidas sobre a podridão dos igarapés. Tudo aqui com seus dias contados pelo Prosamin." Ia pensando essas coisas. Mas não havia muito espaço para reflexão, não, o "bagulho" é o que importava. Estanquei no meio da ponte de madeira. Nenhuma alma viva! ninguém! O chuvisco engrossava. Um cheiro de podre. "Vais sair, Jean? A noite tá feia." E aquela voz materna socando-me o estômago. Martelando meu peito.

"Psiu! Aqui embaixo!" Ouvi. "Quanto tu quer?"

"Quero cinco."

"Quede a grana?" Enfiei a grana pelas frestas da ponte. Esfreguei minhas mãos. Soprei o hálito frio da noite. Recebi o tal bagulho.

"Agora vaza! Vaza que a noite tá feia."

Dei meia volta, aliviado. Meus passos agora eram ligeiros. Vi duas fardas cinza bem na entrada. Entrei em outro beco pra disfarçar:

"Becos e mais becos, a miséria é cheia de becos."

Achei que podia passar por eles numa boa com o meu flagrante dentro daquele livro. Ninguém suspeitaria de alguém de óculos e com um livro debaixo do braço. Aquela altura eu não era otário pra me livrar do flagrante por causa de uns merdas fardados. Não como da outra vez em que fui obrigado a livrar-me de um produto do bom, atirando-o da ponte sobre o igarapé imundo da avenida Sete, tendo que voltar mais tarde e mergulhar no dito igarapé para resgatar o bagulho, contraindo lepstopirose e outras mazelas. Mas o bagulho era do bom. Ora se era. Prendi a respiração e arrisquei. Eles me pararam:

"Tá vindo de onde?"

"Visitar um amigo." Pareciam uns caras legais.

"Quê que tem aí livro?"

"Palavras." Até brinquei.

"Palavras, é?" Falou o outro com o livro aberto. "E isso aqui? São palavras?"

Meteram-me no camburão. Viajei ao lado de um figura franzino que me perguntou:

"Vacilo, mermão?" Não respondi. "O foda são os bolos." Mostrou suas mãos espocadas. Senti frio na espinha. Na delegacia, o titular me pareceu entediado demais pra ouvir o que eu tinha a dizer sobre o flagrante, por isso, ordenou que me enfiassem logo na cela junto com mais cinco. Encolhi-me no canto. Não quis conversa. Olhei pela prìmeira vez o livro que trazia comigo e meu rosto por um momento iluminou. Comecei a ler sossegado. Nas mãos, um infrator. Fazer o quê? Estava tão compenetrado que chamei a atenção de um dos presos:

"E aí, considerado? o que tanto lê aí?"

"Diário de um ladrão", do Gean Genet."

"E a gente come isso?' Perguntou o outro preso, arrancando gargalhadas dos demais. Me deixaram em paz e eu voltei á leitura. Dava para ouvir daquela cela o barulho da chuva que resolveu desabar de vez sobre a cidade. A tristeza ali dentro era visível e injusta. Só eu e Genet sabíamos disso. Mais ninguem.

(Gean Genet escritor, francês, autor de "Diário de um Ladrão" e Nossa Senhora das Flores", dentre outras obras.)

Tambaqui
Enviado por Tambaqui em 28/02/2011
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