A Casa dos Desvalidos
Dalvinha, a filha mimada do Prefeito, observava Dedé, um colega de classe. Segundo diziam, era o menino mais pobre da escola, usava roupas bastante desgastadas, no entanto sempre limpas. Quieto por natureza, falava pouco, só se soltando quando colegas vinham pedir ajuda nas lições. Nessas ocasiões abria um sorriso e explicava pacientemente as dúvidas. Era com certeza o menino mais inteligente daquele quarto ano. “Nunca o vejo trazendo merenda” – pensava Dalvinha. “Será que ele sente fome? E se eu oferecer a minha merenda para ele? Será que ele vai se ofender?” – e seguia em suas meditações, tentando achar um caminho.
Quase um mês depois do início das aulas, Dalvinha encontrou Dedé sentado a um canto do pátio, sozinho, e tomou coragem.
- Olá, Dedé. Mamãe parece que está querendo me engordar como um bacuri. Colocou uma merenda enorme para mim, e eu estou completamente sem fome. Nunca vejo você trazer merenda… Quer para você?
Dedé abriu um sorriso.
- Como alguma coisa antes de vir para a escola. Não estou acostumado a trazer merenda. Obrigado.
- Ah, Dedé, não faça luxo! Não gosto de voltar com a merenda para casa. Mamãe joga fora, dizendo que estraga.
- Que desperdício! Sorte sua que tem fartura.
Dalvinha ficou sem ter o que dizer, e por uns minutos permaneceram ali sentados, calados, até que Dedé, como que subitamente lembrasse de alguma coisa, disse:
- Você não vai mesmo querer sua merenda? Posso ficar com ela?
- É claro! – Alegrou-se Dalvinha.
Ele pegou o lanche, que estava num saco de papel, e foi até a classe guardá-lo em sua mesa escolar.
“Acho que vai comer depois. Será que ficou com com vergonha? Ele é muito tímido…” – pensava Dalvinha.
…
No final da aula Dedé guardou o material escolar em sua sacola de pano, e saiu com o lanche na mão.
“Vai ver quer dividir com suas irmãs…” – refletia Dalvinha. Mas ao perceber que ele tomava um rumo diferente de sua casa, ficou curiosa e resolveu segui-lo. “Se papai vier me buscar, ele que espere. Não vou demorar. Para onde será que Dedé vai com a merenda na mão?”
Dedé caminhava com passos seguros, e não olhava para trás. Dalvinha o seguia a certa distância. O Prefeito, que viera buscar a filha, estranhou não vê-la na porta da escola, e olhando ao redor, percebeu quando ela dobrava uma esquina ao longe. Preocupado, foi imediatamente atrás. A menina continuava seguindo Dedé. Ele entrou em uma rua estreita, caminhou um pouco, e entrou em um beco. Parou em um recanto e chamou. Dalvinha observava a distância. “Se esse moleque der meu lanche aos cachorros, vou ficar de mal dele! Mas antes vou dar-lhe uns tabefes!” – pensava.
Um minuto depois apareceram duas crianças pequenas, uma delas mal sabia andar. Esfarrapados e sujos, aproximaram-se de Dedé com sorrisos no rosto.
- Trouxe uma coisa para vocês. – falou, enquanto dividia o lanche em duas partes, e oferecia às crianças.
Dalvinha aproximou-se. Dedé surpreendeu-se:
- O que você faz aqui? Estava me seguindo?
- Pra falar a verdade, estava sim. Quem são esses meninos, tão sujinhos e trapentos?
- São filhos de uma senhora mendiga. Moram ali, num recanto do beco. A esta hora a mãe deve estar procurando alguma coisa para eles.
- Eu nunca vi pedintes na cidade, pelo menos lá em casa nunca pediram nada.
- É que onde você mora só tem ricos, e os mendigos não pedem nas casas dos ricos, porque são enxotados. Preferem pedir nas casas mais pobres, o povo sempre arruma alguma coisa para eles. Sempre que dá trago alguma comida para essa família, tem crianças pequenas…
Dalvinha observou por alguns momentos os pequenos comendo com gosto seu lanche. Pareciam esfomeados, e muito contentes com aquela refeição extra. Sentou-se em uma pedra, Dedé sentou-se a seu lado.
- Dedé, eu quero chorar!
- Ah, Dalvinha, não vá fazer um berreiro aqui, vai assustar as crianças.
- Vou chorar baixinho, estou triste! – e desmanchou-se em lágrimas. Imaginava as crianças sentindo fome, esperando um pedaço de pão. Imaginava a mãe das crianças pedindo ajuda, e as pessoas fechando as portas, ralhando com ela. Via-se em uma mesa repleta de guloseimas, comendo, enquanto que um monte de crianças magras e esfarrapadas observavam de longe.
Dedé abraçou-a timidamente, e esperou que ela se acalmasse. Não conseguiu evitar que algumas lágrimas escapassem de seus olhos.
- Vamos embora. Seu pai já deve estar preocupado com você. – Disse, depois que esgotaram-se as lágrimas de Dalvinha.
…
Estavam saindo do beco quando o Prefeito os viu e veio até eles. Empurrou Dedé para um lado, quase o fazendo cair.
- Dalvinha! O que você veio fazer com esse moleque nesse lugar? Não tem juízo, não? – e virando-se para Dedé: – E você, moleque, vou te dar uma pisa!
- Papai! Pare já com esse escândalo. Agora deu pra bater em crianças? Perdeu o senso?
- Você vem parar num lugar desses com esse moleque, e fui eu que perdi o senso?
- Eu segui o Dedé, não foi ele que me trouxe. Curiosidade, só isso… E descobri uma coisa que está me matando de vergonha. Culpa sua! Venha ver!
Irritada, arrastou o pai pelo braço e levou até onde estavam as crianças.
- Veja, papai. Crianças que não tem onde morar, que não tem o que comer. E o que o senhor prefeito faz? Me diga papai, o que o senhor acha disso?
- Ah, Dalvinha. São mendigos. Essa gente vive de pedir, não trabalham, são preguiçosos. Não tenho nada com isso…
- Nada com isso? – irritou-se mais ainda. – O senhor é o prefeito, tem que cuidar de seu povo. E será que são preguiçosos ou ninguém lhes dá serviço? Me diga, papai, o senhor diz que são preguiçosos, mas algum dia ofereceu uma oportunidade? Nem sequer sabia que existia gente assim em Alagoinha! Estou com vergonha, papai! Como pode o senhor deixar pessoas nessa situação em nossa cidade?
- Ah, Davinha. Não pense mais nisso! Amanhã mando um carro levá-los embora para outra cidade. Pronto. Problema resolvido!
- Fujo de casa, papai! Aí que morro de vergonha de verdade! Que idéia mais absurda! Se o senhor fizer uma coisa dessas, não quero mais ser sua filha. Vou embora de casa pra nunca mais voltar!
- E o que você quer que eu faça, então?
- Não sei papai. Mas o senhor e aqueles barrigudos da prefeitura têm de fazer alguma coisa. Esse absurdo não pode continuar.
Dedé observava. O prefeito já não sabia o que falar. A cada desculpa, Dalvinha dizia-lhe umas descomposturas. Foram caminhando e brigando, enquanto Dedé tomava rumo de casa.
“Parece uma cobrinha venenosa. A cada asneira que o pai fala, ela dá um bote! Uma cobrinha bonitinha, a danada. E tem um bom coração, ficou comovida com os meninos pobrezinhos. Quero só ver o que vai acontecer!” – Ia confabulando consigo mesmo pelo caminho, e sorria divertido. “Tenho certeza que ela vai querer ajudar os mendigos. Que bom para eles…”
…
Um mês depois o prefeito inaugurava a “Casa dos Desvalidos”, ao lado do posto de saúde. Tinha quartos para acomodar as pessoas durante a noite, oferecia café da manhã, almoço e jantar, feitos pelos voluntários da Igreja Católica local. Pessoas designadas pelo Prefeito percorriam as ruas em busca dos mendigos e pedintes. O Doutor Manoel, o médico da cidade, descobriu que alguns dos adultos tinham amarelão, e quase todas as crianças estavam infestadas de lombrigas e giárdia, e conseguiu na Capital os remédios necessários. Depois de algum tempo, foram conseguindo encaminhamento para as famílias, uns iam trabalhar nos sítios vizinhos, outros readquiriram forças para tocar pequenas roças, e assim foram rareando os pedintes na cidade.
Pouco mais de um ano depois, a Casa dos Desvalidos foi fechada, por falta de gente para ser atendida, e o local virou um orfanato curiosamente administrado: a Prefeitura cedia o espaço, a Igreja Católica cedia pessoal, e os crentes, como eram chamados o pessoal da Igreja Batista local, encarregavam-se das doações de alimentos e materiais. O povo nunca deixava faltar nada à mesa dos órfãos, e não era raro ver as crianças da cidade indo tomar café e brincar com eles.
Foi assim que a briga de Dalvinha com o pai fez nascer a Casa dos Desvalidos, que depois virou Orfanato e mobilizou o espírito solidário na cidade.