A Enfermeira Tagarela
(Este conto foi publicado na Antologia "Vingança, prato que se come frio?". Como o livro não é muito acessível, resolvi publicá-lo também no Recanto.)
Parte 1 – Diário dos Últimos Dias (Postagens no Orkut e Facebook)
(25 de maio)
Comecei a escrever isto porque não tinha mais o que fazer. Estou num hospital, internado para tentar resolver um barulho na minha cabeça que me incomoda há dois anos. É um hospital particular muito bom, cheio de mordomias. Uma delas é a possibilidade de uso do meu notebook e conexão à internet.
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(28 de maio)
Os primeiros resultados foram aterrorizantes. Os médicos mais otimistas me disseram que era um pequeno coágulo, mas havia esperanças de remoção com chances de sobrevivência. Um médico pessimista me disse que a coisa era bem mais grave, e que eu teria no máximo mais uns meses de vida. Depois disso fiquei imaginado o que farei quando sair daqui. Estranhamente não pensei em coisas extravagantes. Queria apenas ver vitrines no shopping, tomar um café com leite num barzinho da Lapa onde há tempos eu não ia, conversar um pouco mais com minha tia Zelma, talvez um passeio pelo Ibirapuera, e coisas desse tipo.
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(29 de maio)
Hoje me apareceu uma enfermeira tagarela, que passou horas conversando comigo. Contou sua vida, falou das coisas que fazia nas horas de folga, quis saber meus desejos, me ajudou com o notebook (eu domino pouco essas coisas da informática). Por precaução, passei para ela minha senha, para informar a meus amigos caso aconteça algo…
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(30 de maio)
Hoje vou à mesa de operações. Disseram-me que não é possível demorar mais. A enfermeira tagarela me confortou, sua voz agradável tem o dom de me acalmar. Tenho vontade de beijá-la, mas vou deixar isto para depois da cirurgia. Espero que ela esteja presente e segure minha mão…
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(01 de junho)
Peço desculpas a todos que receberem esta mensagem, por invadir o espaço de um amigo . Sou a “enfermeira tagarela”. Com tristeza informo que o paciente não resistiu e peço a todos os amigos que confortem os familiares. O hospital está tomando as providências necessárias. Vou manter as publicações dele por mais algum tempo, e depois encerro suas inscrições (Orkut, Recanto das Letras, Facebook e outras). Aproveitem enquanto isso.
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Parte 2- A Enfermeira Tagarela
Fiquei indignado! Como ela pode aprontar uma dessas comigo? Ah, essa enfermeira…
Dias atrás me internei num hospital particular para descobrir as causas de um zumbido persistente no ouvido. Confesso que exagerei um pouco da dimensão do problema, não sei se pelos remédios que andei tomando, ou se foi pelo pavor de uma cirurgia. A questão é que quando um médico me falou que era um coágulo (pequenininho, disse ele) e que seria pior se fosse um tumor, já fiquei imaginando que teria poucos meses de vida.
Uma enfermeira, vendo meu estado de aflição por causa de nada, passou a me visitar constantemente, e com ela eu conversava horas a fio. Sua voz suave, seu jeitinho charmoso aos poucos foram me acalmando, mas quando o médico falou que precisava fazer uma pequena cirurgia para drenar o coágulo, surtei de vez. Fiz escândalo, achei que eu iria morrer, imaginei que os médicos estavam escondendo meu estado de doença, uma verdadeira boiolice. A enfermeira empenhou-se em me acalmar, mas não teve jeito. Pedi a ela que avisasse meus amigos, dei-lhe a senha de minha rede social, e somente depois dela prometer que avisaria a todos, sosseguei. Mas no dia da cirurgia perdi as estribeiras. Creio que a ofendi seriamente, nem me lembro o que disse, só me lembro que ela estava chorando quando saiu do quarto.
Bem, a cirurgia não durou mais que uma hora, mas a anestesia foi geral. Fiquei ainda dois dias no hospital. Ontem recebi meu notebook de volta e descobri a vingança da enfermeira tagarela. Avisou a todo mundo que eu estava morto! Foi uma confusão geral. Amigos ligavam a toda hora para saber do ocorrido, minha família queria vir em peso para São Paulo. Felizmente moram todos longe e foram avisados a tempo. Ontem mesmo, ainda meio prejudicado pela anestesia, procurei a tagarela. Estava de folga, mas veio ao hospital, e aproveitei para descarregar todo meu ódio. Falei e xinguei até cansar. Por fim ela disse:
- Você me ofendeu, “matei” você. Estamos quites – dizendo isso me beijou e foi embora, deixando-me boquiaberto.
Hoje, 5 de junho, saio do hospital. A minha enfermeira tagarela já avisou que vem me buscar. Estou ansioso. Pensando bem, vou precisar convalescer, e nada melhor que uma enfermeira ao lado para me distrair com sua tagarelice, sua doçura, seu calor… Ah, esqueci do principal: a cirurgia foi bem sucedida, afinal foi só enfiar uma agulha no ponto certo e retirar uma gotinha de sangue. A zoeira no ouvido passou. O difícil vai ser explicar aos amigos a questão da mensagem, mas ela com certeza me ajudará com bons argumentos.