Espíritos de Natal
Espíritos de Natal
por Pedro Moreno (www.pedromoreno.com.br)
A senhora se aproxima do mármore frio e deposita suas flores em cima.
– Olha Marcelo, a Dona Gertrude já chegou.
– Pois é Cássio, pois é...
Os dois observam a senhora varrendo a lápide com uma vassoura sem cabo, quando fica satisfeita deposita as flores do campo plantadas no vaso e senta túmulo. Da sua bolsa tira um lenço e passa a refletir.
– Poxa Marcelo, é só chegar o natal que dona Gertrude vem aqui. Nunca a vi faltando ou sequer se atrasando.
– Pois é Cássio, pois é...
– Não que eu tenha alguma coisa a ver com a vida dela...
– Não tem não Cássio, não tem não.
– Não precisa ser bruto comigo Marcelo.
– Realmente não preciso.
– Sabe, eu odeio me meter nesse tipo de assunto, até entendo que o Carlos era o amor da vida de Gertrude. Mas todo natal Marcelo?
– É verdade...
– Não sei você, mas não vejo graça em vir aqui no cemitério ficar chorando pelos seus entes queridos. Pior ainda no natal. Poxa Marcelo! Natal é época de alegria!
– É verdade.
– Enquanto Gertudre está aqui, seus filhos, netos, noras e irmãos estão na casa dela, ceiando, vivendo o natal.
– Cássio, você gosta quando vêm te visitar.
– Até gosto Marcelo, no dia de finados é normal a família vir aqui, mas no natal?
– Cássio, nem sabia que você era cristão.
– Cristão nunca fui. Para mim finados é feriado do governo e não religioso.
– Seria melhor contar para ela...
– Contar como Marcelo? Ela vai acreditar em dois espíritos que deveriam ter alcançado a luz há pelo menos trinta anos? Dois fantasmas não tem muita credibilidade.
– Sei lá... Se o Chico Xavier ainda tivesse vivo.
– Aliás esse é outro problema, eu não considero o Chico escritor. Poxa Marcelo! O cara não recebe ditado de morto? Ele é no máximo um digitador.
– Pode ser.
– Na verdade tudo é muito confuso. O mundo é igual a Gertudre. O Carlos bateu nela, roubou suas economias, xingou de tudo que é nome e agora que morreu é um santo. Marcelo, o Carlos para ela é um santo!
– É difícil.
– Difícil? Complicadíssimo! Imagine então se ela soubesse...
Dona Gertudre leva o lenço puído até seu rosto e passa a enxugar suas lágrimas.
– Fala para ela então Marcelo! Marcelo! Para onde você pensa que vai?
– Falar para ela, ué?
– Seu desumano! Não vê que a mulher chora?
– Tecnicamente não somos mais humanos...
– Tecnicamente, tecnicamente. Mas o que realmente importa é o nosso sentimento, isso diz se somos humanos ou não.
– Pode ser.
– Pode ser nada! Você, gostaria de ter tal notícia?
– Sim.
Os dois espíritos ficam em silêncio por um tempo olhando para a senhora se derramando em lágrimas.
– Ela poderia estar com a família dela Cássio. Você tem razão.
– Seria melhor caso ela soubesse a verdade Marcelo. É muito chato vê-la chorando todos os dias por um cara que morreu de verdade.
– Forjar a morte para a própria mulher é muita sacanagem.
– Devemos falar com ela Marcelo!
Os dois saem de seus túmulos e seguem pelo cemitério em direção à lápide de Carlos, porém Marcelo coloca a mão na frente de Cássio para impedi-lo.
– Nós estamos fazendo isso por ela ou por nós?
– Poxa Marcelo, é claro que é por ela.
– Por um momento achei que é a nossa consciência que estamos salvando.
Os dois ficam em silêncio por um momento olhando para a Gertudre.
– Talvez seja a nós que estamos salvando Marcelo, talvez.
Os fantasmas se materializam em frente a Gertudre.
– Olá dona Gertrude, nós temos uma coisa para te contar...
A senhora arregala os olhos ao ver os espíritos e cai pesadamente no chão.
– Merda Marcelo!
– Merda Cássio!
– A mulher empacotou Marcelo!
– Empacotou ?
– É. Abotou o paletó de madeira, esticou as canelas, comeu capim pela raiz, desencarnou, faleceu, MORREU!
– Pois é Cássio, pois é...
Do corpo de Dona Gertrude, uma luz mística surge e logo seu espírito sai de suas narinas. Por um momento o silêncio no cemitério é profundo. A recém morta olha para seu corpo e depois para os fantasmas.
– Finalmente vou me encontrar com Carlos!
– Ai, ai...
– Conto eu ou conta você Marcelo?
– Contar o que? Carlos já foi para o céu?
– Olha Dona Gertudre – começa Cássio – o que falarei agora pode te deixar muito... desanimada.
– Fale logo! Que enrolação é essa?
O fantasma conta tudo. O fato de Carlos estar vivo, o indigente que foi enterrado em seu lugar e tudo mais que ela sequer desconfiava. A ex-viúva fica em choque, leva sua mão ao rosto e paralisa.
– Cássio...
– Fala Marcelo.
– Acho que você não precisava contar sobre a amante.
– Talvez.
– É... Talvez.
Dez anos depois...
– Marcelo! Você não sabe quem chegou?
– Não.
– O Carlos!
– Ai, ai...
O fantasma de Carlos, enterrado como indigente no mesmo cemitério, surge entre as lápides para cumprimentar seus novos colegas.
– Oi! Prazer, eu sou o Carlos.
– Oi Carlos – diz Cássio.
– Oi Carlos – diz Marcelo.
– Oi Carlos!
Os três fantasmas olham em direção a terceira voz e encontram o espírito de Dona Gertrude faíscando.
– Cássio...
– Vamos dar uma volta Marcelo, vamos dar uma volta...
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