Exército de zumbis

Francisco parou o carro, desligou o motor e ficou alguns segundos parado lá dentro, sem coragem de sair. Olhou para o relógio e averiguou o horário; duas da madrugada. Mais uma noite de procura, e ele queria estar em qualquer lugar menos ali; por outro lado, tinha algo a fazer.

Saiu do carro hesitante, olhou em volta como sempre fazia, a rua larga estava completamente vazia, as lojas do comercio que durante o dia recebiam milhares de pessoas estavam completamente as escuras; protegidas por sombras dando a impressão de que todo aquele quarteirão era na verdade parte de uma cidade desabitada.

Trancou o veículo e colocou-se a caminhar, pôs as mãos nos bolsos da calça jeans surrada para se proteger um pouco mais do frio que fazia naquela noite em particular. Francisco também usava um casaco velho de moletom. Caminhou por duas quadras completamente sozinho até encontrar as primeiras pessoas.

Um grupo pequeno, seis a oito pessoas, estavam sentados no meio fio e ao longe Francisco via pequenos vagalumes faiscando nas mãos de alguns deles. Uma fumaça tênue também se erguia do grupo que parecia querer ficar o mais junto possível para afugentar o frio da madrugada.

Francisco caminhou procurando não fazer nenhum movimento mais agressivo, em direção ao primeiro grupo. Não queria que eles o considerassem uma ameaça e também não queria afugentá-los.

Se aproximando em uma distância que julgou segura ele olhou para cada uma das pessoas que ali estavam, sete homens; alguns altos, outros baixos, caucasianos e negros, e todos muito magros e malcuidados, estavam sujos, desgrenhados e no momento em que Francisco olhou, viu que quatro deles estavam fumando; isso explicava as pequenas faíscas luminosas que ele tinha visto ao longe e a fumaça que era lançada ao ar.

Não achou quem procurava e passou por eles sem dizer nada. Continuou em frente. Este era o atual lema de sua vida; continuar sempre em frente.

Francisco tinha quarenta e nove anos, e estava em busca da filha de vinte anos, Lucia, que há um mês não dormia em casa.

Ele, juntamente com o filho, procurou alguns colegas de Lucia e conseguiu a informação de que ela estava dormindo pelas ruas sem querer mais manter contato com nenhum deles ou com qualquer pessoa conhecida.

Caminhou mais um quarteirão e avistou mais um grupo de pessoas, não era pequeno como o primeiro, mas sim composto de muitas pessoas; tomava a rua larga de um lado a outro como um enxame de abelhas. Homens e mulheres caminhando de um lado para outro aparentemente sem destino.

O coração de Francisco doeu naquele momento.

Continuou andando até ser engolido pela multidão; ele prestava atenção em todas as mulheres que possuíam as características físicas da filha; alta e esbelta, cabelos na altura dos umbros. Ficou surpreso com a quantidade de mulheres vagando ali, algumas não eram mais do que adolescentes, muitas estavam grávidas, e todas estavam completamente alucinadas. Falavam coisas estranhamente desconectas.

De igual modo os homens e alguns meninos com não mais do que dez ou doze anos também caminhavam cada qual carregando um copo de plástico nas mãos ou um cachimbo improvisado que usavam para compartilhar o vício que os unia todas as madrugadas, como numa estranha confraria, naquela região. O crack.

Tudo o que ele queria era achar Lucia e ir para casa. A multidão parecia ser um só ser, ora estava caminhando para um lado e ora para o outro, como um cardume de sardinhas escuras sujas e maltrapilhas. De certa forma lembrava antigas procissões, nas quais homens e mulheres carregam velas, flores, terços e caminham silenciosamente de um ponto a outro da cidade, o que, absolutamente, não era o caso ali. Ao invés das velas eram isqueiros; no lugar das flores, os pequenos cachimbos ou copos plásticos e no lugar dos terços, as pequenas pedras de crack.

Os olhos daquelas pessoas estavam vidrados, mas ao mesmo tempo não mostravam vitalidade alguma, eram olhos cansados; os ossos das faces de muitos deles eram salientes e outros tantos ostentavam um corpo magro, chegando a ser esqueléticos; com braços e pernas tão finos que pareciam um grave caso de desnutrição somado a um quadro agudo de anorexia. Francisco sabia que se tratava dos efeitos devastadores da droga e não entendia como o corpo humano podia suportar tamanha brutalidade. Teve vontade de chorar só em pensar na filha com aquela aparência terrível.

Alguns homens não usavam camisa e ignoravam o frio noturno por completo, suas costelas aparentes eram recobertas apenas por uma fina camada de pele sem gordura protetora alguma. Tais imagens jamais se descolariam de sua retina.

Ouviu alguns gritos mais à frente e logo percebeu que um pequeno grupo estava discutindo e batendo boca por alguma coisa que ele não sabia o que era; aparentemente uma mulher muito magra com uma criança pendurada nos braços como se fosse um boneco, arrancou um dos copos usados para a inalação da droga das mãos de outra e correu por alguns metros se embrenhando ainda mais no enxame humano; aquela que perdeu o objeto gritou alguma coisa e provavelmente não teve força para correr atrás da outra.

Francisco teve o cuidado de olhar para uma das mulheres, não era sua filha; graças a Deus. A outra sumiu muito rapidamente, mas também não tinha o biótipo de Lucia. Continuou caminhando.

Já fazia três semanas que Francisco passava por aquela rotina, todas as noites ele ia até aquele lugar e caminhava, olhava para as pessoas; às vezes conversava com algumas delas, perguntava se alguém conhecia a filha, descrevia Lucia, mostrava fotos e sempre voltava sem nenhuma informação a respeito dela que pudesse ajudar. Francisco era um homem desesperado apesar de seu ar aparentemente tranqüilo quando falava com as pessoas, mas sua vida agora estava de cabeça para baixo e se resumia a busca pela filha, nunca desistiria, ia continuar procurando por quantas noites fossem necessárias. Sempre suportando a dor terrivelmente excruciante que seu coração sofria cada vez que via um homem ou mulher naquela situação.

A mãe de Lucia, esposa de Francisco, estava em piores condições do que ele, Jandira era uma mulher extremamente doce e forte, mas a notícia dada pela própria filha de que era viciada em crack foi um golpe duro demais, não só para ela como para ele e para toda a família. Já fazia semanas que Jandira se mantinha sob a influência de remédios. Mesmo assim durante os dias ela andava a cidade toda procurando em hospitais, delegacias, casas de recuperação para dependentes químicos, centros de grupos de apoio e lugares afins na companhia do filho e irmão de Lucia, Beto, pela filha que desaparecera.

Lúcia não telefonou mais para casa e não atendeu nenhum dos telefonemas dados por seus familiares; provavelmente tivesse vendido o aparelho celular para usar o dinheiro no vício. Era triste, mas nem Francisco nem Jandira podiam se abater com aquilo, ainda tinham esperança de trazer a filha para casa e fariam o sacrifício que fosse necessário para ajudá-la.

A epidemia de crack estava se espalhando mais rápido do que qualquer outra droga já comercializada antes nas grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, que já haviam sido quase totalmente infectadas criando feridas como aquelas, feridas sociais chamadas de cracolândias; eram ruas, terrenos, prédios abandonados, viadutos e uma infinidade de lugares, tanto durante o dia quanto de noite. Outras cidades seguiam o mesmo caminho num ritmo assustadoramente veloz.

Tudo acontecia à luz do dia, bem diante de todos; sociedade e autoridades fecharam os olhos por um período de tempo, talvez acreditando que as coisas se arrumariam por si mesmas e o resultado foi devastador. A multidão pela qual Francisco navegava naquela madrugada era a prova viva daquilo.

Francisco se sentia culpado também; podia ter percebido, podia ter interferido de alguma forma, podia ter tentado alguma manobra que afastasse Lucia do dragão do vício; mas não o fez, e agora corria um sério risco de perdê-la para o que ele considerava a maior epidemia urbana dos últimos tempos. Pensou em quantos pais e mães estavam passando pela mesma agonia que ele; não desejava aquilo para ninguém.

No fundo, havia pouco a fazer; mas não podia ficar mais em casa simplesmente esperando, não podia se abater e por esse motivo caminhava e procurava todas as noites. Pretendia continuar fazendo aquilo até encontrá-la.

A certa altura ele começou a ver pessoas caídas pelo chão ou encostadas nas portas das lojas fechadas; muito lixo também estava espalhado pela rua e algumas meninas, jovens mulheres se aproximaram dele para se oferecerem em um programa, vendendo o próprio corpo em troca de dinheiro, uma quantia assustadoramente baixa, Francisco mal pôde crer; outras apenas pediam alguns trocados; duas delas já estavam grávidas. Meninas com olheiras enormes e arroxeadas e o físico muito debilitado.

Alguns homens também se aproximaram dele tentando vender relógios e uma serie de pequenos objetos também na intenção de angariar algum trocado que pudesse ser gasto imediatamente. Francisco mostrava a falta de interesse no negócio da forma mais polida que conseguia.

Cães corriam no meio das pessoas e latiam uns com os outros num comportamento que às vezes parecia o mesmo apresentado pelos próprio homens, se é que ainda podiam ser considerados assim; suas formas magras, seus rostos sem cor, suas roupas sujas, as vozes desencontradas e a total falta de sentido da multidão caminhando rumo a nenhum lugar dava a impressão de que Francisco estava acompanhando um exército de zumbis.

Os cachimbos soltavam suas fumaças em cantos escuros da rua e as faíscas provocadas pelos isqueiros espocavam diversas vezes durante a caminhada. Francisco olhou para todas as mulheres que encontrou, mas nenhuma delas era a filha que tanto queria encontrar. A multidão começou a se dissipar de um modo meio impreciso e vagaroso, não havia alternativa a não ser fazer o caminho de volta.

Enquanto voltava para o carro ele abordou algumas pessoas que pareciam estar em melhor estado e perguntou pela filha dando as características dela e mostrando as fotos, mas não houve resposta positiva. Parecia que Francisco estava procurando um fantasma; mas ele sabia, tinha certeza, que ela estava por ali e que mais cedo ou mais tarde a encontraria, só tinha medo do jeito como a encontraria.

Todas as noites terminavam do mesmo jeito. Francisco voltava para o carro e chorava dentro dele por um longo período de tempo com o rosto encostado ao volante, em seguida ligava o veículo e voltava para casa já pensando na próxima madrugada.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 20/12/2010
Código do texto: T2682459
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