A VISITA
Noite de sábado. Uma enorme tristeza começava a tomar conta de si. A expectativa era enorme. Uma expectativa cruel, mórbida, algo que lhe arrancava a carne inteira, sem anestesia. Com fingida alegria, suas mãos trêmulas arrumavam cuidadosamente uma enorme cesta com petiscos variados. Era o ritual dos sábados à noite. Vagava pela casa inquieta, assustada, preparava-se para mais uma batalha de dor e medo. Entregue ao seu travesseiro, ouvia ao longe ruídos familiares de vida: sorrisos, crianças gritando, chorando, música. Assim como a sua já fora um dia. Odiava tudo aquilo, odiava o mundo e a inveja a dominava, fazendo-lhe tremer as carnes de um corpo que começava a cansar daquilo tudo. E, acompanhada da sua solidão, adormecia.
O amanhecer não traria novidades. Tudo igual, calculadamente igual. O que a esperava? Nunca sabia. Ia, assim, por obrigação, por amor. Algo maior, muito maior a impelia. Era sua missão.
Levantava devagar. Um banho cuidadoso funcionava como armadura para suportar aquela manhã de domingo. Pegava a enorme cesta. Pesada como uma cruz. Era a sua cruz. Pé ante pé, saía, silenciosa, deixando para trás suspiros sonolentos, roncos pesados, casa silenciosa. Deixava o seu mundo para penetrar aquele outro, cruel, duro e a sua coragem era o seu passaporte para o inferno. Uma enorme fila a esperava. Mulheres idosas, jovens, crianças maltrapilhas, outras cuidadosamente arrumadas, bebês sossegados como se já conhecessem o seu destino e com ele se contentassem. Homens, poucos, muito poucos. Aquilo era coisa para mulheres. Guerreiras que são, capazes de se doar por amor, como se fosse sina natural da espécie. Elas, ali sentadas, sob sol ou chuva, buscavam amenizar sua dor, cada qual a seu modo. Umas, como ela, silenciavam, vez por outra, trocavam breves palavras com alguma “companheira”. Outras havia que oravam, as mais ousadas, as que faziam parte da paisagem, riam e brincavam. E ela, ali, jamais deixou de se perguntar o porquê de estar vivendo uma história que não era sua. Era um personagem na história errada. Como? Quem disse que seria assim a sua vida? Por quê? Por quê? Olhava os céus e clamava por ajuda. Que Deus era aquele que a condenara a tão difícil tarefa?!
E entre lágrimas e medos, e ódio, e tristeza, ela seguia o seu destino. E esperava. As horas também pareciam brincar com sua dor e resolviam prolongar aquilo tudo. Quando entraria? Como seria? O que a esperaria? De repente, um número era gritado. Ela corria agitada, trôpega outras vezes. O suor sempre escorria-lhe pelo corpo, indiferente, parecia rir-se dela e daquele momento. Ele era a materialização da sua dor, do seu ódio. Colocava sua enorme carga sobre o balcão sujo e fétido. Mãos imperiosas, sarcásticas, indiferentes, remexiam aquilo tudo. Sem sequer olhar em seus olhos, aquelas pessoas iam cumprindo a sua missão, mas sem nunca, jamais, olhar para ela . Se o fizessem, defrontar-se-iam com uma dor tão intensa, uma mágoa tão grande que não suportariam. Ao final da inspeção, mais alguns minutos a separavam do pior dos momentos. Era chegada a hora. Ela caminhava escondendo-se, com os olhos baixos, mãos apertadas. Olhava aquela mulher como se fosse um soldado nazista a condenar-lhe por um crime que não cometera, mas estava ali a rir-se da sua dor, do seu pudor aviltado, estuprado. Tirava a roupa rápida e compulsivamente. Deixava-se olhar e as lágrimas lhe escorriam impertinentes, teimosas. Suas companheiras de 10 anos... Tinham o mesmo sabor, a mesma intensidade. Vestia-se, levantava a cabeça, pegava sua cesta e seguia corredor adentro. Ainda havia dignidade naquela mulher. Ainda havia coragem.
Um enorme portão se abria, cadeados batendo forte e lá estava ele à sua espera. Como poderia abandoná-lo? Caminhava lentamente ao seu encontro. Representava. Sorria como se tudo fosse parte da sua vida, como se estivesse preparada para muito mais e morria a cada segundo. E morria quando sorria e contava coisas e o abraçava e mostrava o que lhe levara de gostoso. Morria a cada gesto, a cada doce mentira, a cada viagem ao passado, a cada fantasia imposta por ele. Por que ela???!!!Por quê??!! As horas custavam a passar. De repente, o aviso: fim de linha. A liberdade estava-lhe sendo devolvida. Hora de sair. Caminhava rapidamente. Esperava pelo sol, pelo que lhe sobrara do domingo. Queria ver suas filhas, sua vida, seu mundo. Do lado de fora, a saudade, a pena, a dor. Do lado de fora, perguntava-se até quando suportaria.
Pronto, o domingo se fora. Mais uma semana de espera e ansiedade. Mais uma semana...E a segunda–feira chegaria sem esperanças, cheia de dúvidas. E ela sorriria, e seguiria, contemplando a vida e o que ela era capaz de fazer com alguém. E continuaria perguntando por onde andava Deus que a esquecera. E, a cada noite, no seu quarto, lembrar-se-ia do olhar do seu irmão e a única certeza que carregava em si era a de que jamais o abandonaria.
Rozana Pires
07/12/2010