MISSIONÁRIOS DA PILANTRAGEM
MISSIONÁRIOS DA PILANTRAGEM
Não é mais novidade para ninguém que as pessoas mais apresentáveis e bem vestidas, hoje, podem ser os piores dos salafrários, exemplo melhor do que há em Brasília não existe.
Foi principalmente por este e outros motivos que olhei com desconfiança desde o primeiro dia para os dois arrumadinhos que se tornaram figurinhas cotidianas do motel.
Chegaram aqui com ares de viajantes; ele numa calça jeans de pano mole e blusa social azul bebê, cabelo besuntado de gel numa cor loura angelical, a sombracelha com jeito de quem acaba de tirar os fios excedentes, sapato caramelo de bico quadrado – coisa comum para os metrossexuais de hoje. Ela, num terninho azul bem passado, mulata magra e com bico de lacre constantemente vermelho berrante, cabelo espichado como quem passou quilos de alisante, brincos enormes e lápis preto nos olhos tal qual Cleópatra.
Não chegavam a ser assim duas presenças inigualáveis, porém nada comum pelos trajes ao que estou acostumada a receber por aqui.
Passaram a morar no hotel, os dois com extremos de superioridade, gabolas por excelência. Até que convenceriam alguém com suas histórias de trabalhos bem remunerados, roupas caras, viagens incríveis, se não fosse pelas evidências contraditórias que não daria para esconder nem mesmo de um péssimo observador com o passar dos dias. Ele, contando marras de segurança de um figurão na Zona Sul, viajor constante em sua companhia, sempre a serviço de guarda-costas e ela chefe de enfermagem de um hospital de renome (que até hoje desconheço qual seja) e que agora procurava emprego como acompanhante de uma senhora distinta, também na Zona Sul ou na Barra da Tijuca, o que segundo ela, não seria difícil devido ao seu extenso e rico currículo, ao qual nunca tive oportunidade de ver.
Acredito que a maioria dos mentirosos deva pensar que as criaturas ao seu redor sejam as mais burras e idiotas da face da Terra, e que todos, com exceção deles desconhecem qualquer tipo de esperteza e são desprovidos totalmente de raciocínio, além de que incapazes de ligar coisas óbvias a acontecimentos que não se encaixam de forma nenhuma.
Em primeiro lugar, o que estariam fazendo nesta terra de ninguém, dois funcionários que atuam tão longe daqui e que se dizem tão bem remunerados? Por que não procurar um hotel, que fosse até de média categoria ou um conjugado mobiliado num local mais próximo aos seus respectivos empregos?
Era mais irritante ainda, quando começavam a falar de suas posses imobiliárias em Angra dos Reis; e eu que já fora moradora neste lugar queria arrancar seus narizes de Pinóquio com serrotes, enlouquecida ao ouvir seus desencontros narrativos. Quieta em meu canto pensava em formular uma pergunta que os deixaria atônitos, mas decidi que não valeria pena; seria atingida com outra mentira que me irritaria ainda mais, resolvi esperar que suas máscaras caíssem por si mesmas, o que tinha certeza que aconteceria mais cedo do que imaginava.
Não tardou que em meu trajeto nas idas e vindas por meu bairro, começasse a me encontrar constantemente com esses dois charlatões, quando a resolver um ou outro problema diário, nas idas ao supermercado ou na saída da faculdade, avistasse os dois a vagar pelas ruas. Muitas vezes era vista e as desculpas afloravam trêmulas de suas bocas mentirosas, outras, fazia questão de me esconder para que não os assustasse e pudesse “pescar” algo, qual detetive que eu mesma me auto-elegera.
Comecei a achar esse jogo emocionante e nada mais fazia que alimentar seus devaneios e sempre que me procuravam para conversar, soltava que os havia visto em algum lugar assistindo-os nervosamente criar desculpas. Mirabolava em minha mente o que poderiam estar fazendo em suas andanças e já começava a imaginar ”se estariam envolvidos com drogas, ou se, porventura poderiam ser infratores, foragidos de outro Estado, seqüestradores, estelionatários, qualquer espécie de gângsters, rufiões engomadinhos ou perigosos assassinos...”
A sentença foi ficando mais clara a cada dia inútil de suas vidas passado dentro dos cubículos. Como funcionários tão requisitados poderiam passar dias após dia à toa dormindo sem freqüentar seus empregos? Além disso, tornou-se rotineiro que passassem a pedir dinheiro emprestado a todos os funcionários depois disso o resto foi conseqüência. Toda sorte de utensílios e o básico que alguém necessita era a mim solicitado, de graça, é claro: agulha e linha, cremes condicionador e para pentear, aparelho de barbear, batom, lápis delineador e de sombracelha, cartão telefônico, esmalte, acetona e todo o material para manicura que eu pudesse ter disponível, pente, pinça, pasta de dente...
A princípio, não sei bem se por educação, ingenuidade ou aquele conhecido receio de dizer não e parecer que se está sempre de má-vontade, atendia seus pedidos, mas depois cansada de seus contos faraônicos sobre suas peripécias e viagens opulentas resolvi “nunca mais ter nada para emprestar”. No início dessa atitude me senti um pouco egoísta, pois sou alguém que detesta dizer não, ainda mais tendo o que disse não ter, mas acreditava e deixei claro aos dois num dia em que já acordara às avessas que alguém do nível deles, viajantes que são devem ter à disposição tais utensílios básicos necessários a qualquer andarilho que se preze, e ademais quem tem dinheiro para viajar teria que ter para bancar suas prioridades, educadamente afastando qualquer chance de um novo pedido 0800.
Porém, vergonha tem quem pode; e assim os pedidos continuaram não só a mim como para todos os outros empregados desta casa, e até a pobre cozinheira tornou-se alvo de pedidos de pratos feitos que só seriam pagos dali a uma semana ou talvez nem fossem. Com isso comecei a pensar se ali não teria virado uma casa de caridade.
Avessos a tudo isso, com a maior cara-de-pau, prosseguiam com seus contos de Grimm, permeados de suntuosidade, sempre nas mesmas roupas e sapatos, cheirando a cãezinhos molhados, de maneira que era impossível não notar que agora, o renomado segurança já vestia há um mês e meio a mesma camisa vermelha, que eu começava a acreditar ser seu uniforme de trabalho, se não o visse perambulando pelas ruas e como um notívago a procura de não-sei-o-quê, e sua primeira dama do alto de seu mesmo terninho azul, continuava a seguir com seu nariz empinado, embora não se cansasse de levar “não” nas fuças em sua tarefa de pedinte.
De quando em vez sumiam por um mês ou mais e depois voltavam cheios de novas histórias. Ele com uma nova cor de cabelo e a sombracelha feita tal qual um andrógino que não se sabe qual opção sexual teria; ela, coberta de penduricalhos, latões brilhantes, rodelas nas orelhas, braceletes reluzentes, pulseiras ofuscantes, todas sem sombra de dúvida bijuterias das mais baratas, que por vezes imaginei que iriam me cegar caso insistisse em fixar o olhar. Contudo, em seu sorriso amarelo de nicotina gritava o mesmo batom vermelho, pastoso e borrado no dente, que de certa feita não pude me conter e a presenteei com um de cor dourada, mais condizente com sua cor morena e mais discreto para usar à luz do dia – Para quê?! Desde desse dia virei alvo de toda sorte de pedidos de uma vasta linha de maquiagem, que eu delicadamente disse não poder oferecer, explicando que o tal presente fora por sorte dela algo que ganhei e que não combinava com meu tom de pele, por isso decidira lhe dar.
Finalmente, sem que eles desconfiassem, as peças do quebra-cabeças foram juntando-se, parentes seus vinham ou telefonavam a sua procura e começaram a freqüentar o hotel. Esses, também indignados com suas enrolações, soltavam de primeiro comentários escabrosos a seu respeito e depois todo o desenrolar de uma estória nojenta.
Nesse ínterim já sabia que rodavam por aí contando lorotas para quem quisesse ouvir: que eram missionários vindos de outros Estados, que levavam a palavra divina e arrecadavam fundos para casas de caridade das proximidades no interior pobre em que viviam. Iam às igrejas e sugestionavam com seu chororô até os mais esclarecidos dos cristãos, adquirindo verba para, segundo eles, viajarem e arrematarem mais ovelhas, conseguirem mais donativos ou levarem as que já tinham conseguido para os pobrezinhos órfãos e velhos que auxiliavam.
Entendi nesse momento porque certas vezes as roupas bem passadas e de outras vezes os trajes mofados de sempre: afastados da família e não podendo mais ter uma paragem certa, pois estavam manjados no lugar onde viviam, mudaram de moradia e vieram enriquecer nosso lugarejo e o hotel com seus golpes de bons samaritanos, sequer podendo retornar à suas casas para buscar o restante de suas roupas. Dormiam de dia e à tarde saíam como sanguessugas contando suas histórias tristes, nas casas e nas igrejas, ou para qualquer um com boa vontade que encontrassem na rua com disposição para soltar um dinheirinho, buscando patrocínio para pagar sua diária no hotel e seus vícios de bebedeira e de drogas que inegavelmente eu sentia na marola que exalava cada vez que ia chamá-los no quarto. Eram madrugadas de bebedeira, onde até fingiam receber entidades que davam consultas ao ar livre para os outros freqüentadores do bar que passassem a noite no motel, adivinhavam o futuro em troca de garrafas de cerveja, cigarros, drogas e dinheiro, e cheguei a acreditar que realmente nosso amigo trabalhador-segurança-engomadinho estava mesmo possuído, pois presenciei cena aterrorizante quando o vi quebrar a borda do copo de cerveja com os dentes e depois pegar o pedaço de caco de vidro e cortar o antebraço como um louco, dizendo que não podia sentir dor porque não era o homem que estava ali e sim um espírito.
E assim era sua rotina, quando conseguiam boas quantidades em donativos, viajavam como missionários e voltavam abastados, senão passavam quais mendigos de boas falas, cavando nas ruas seu pão de cada dia, ou se posso melhor dizer, seus vícios de cada dia, para depois retornarem cá como bons moços.
Tristemente, fiquei a imaginar se pessoas como essas podem ser perdoadas por brincarem com a fé e a boa vontade de gente como eu e outras que inda acreditamos na força da caridade, na ajuda ao próximo, e se um dia isso terá um fim...
Porém não era nada de se assustarem mais um dia no local em que trabalho: O Hotel dos Horrores. E nessa confusão pensei se não haveria uma maneira de selecionar melhor os hóspedes, mas como se eles a princípio foram os mais bem apresentados que já vieram aqui até hoje?
(CAPÍTULO DO MEU LIVRO - AINDA NÃO EDITADO "DIÁRIO DE HOTEL - UMA VISÃO BEM HUMORADA DE TUDO QUE NÃO DEVE SE FAZER EM UM MEIO DE HOSPEDAGEM)