AS NOTAS

AS NOTAS

Desceu do táxi, onze reais. Ele só tinha uma nota de cinqüenta. Arriscou, o motorista disse que era a primeira viagem e estava sem troco, mas meteu a mão no bolso e viu meio que por cima o que tinha. Achou que daria.

– O senhor tem um real aí?

Seu Deolindo meteu a mão na algibeira (como ele gostava de falar) e achou uma moeda. Deu-a ao motorista. Este lhe deu três notas de dez reais e não tinha mais nada. Pegou o dinheiro de volta e disse:

– O senhor espere um momento, vou trocar sua nota ali com aquele moço no bar. Desceu, foi a um quiosque dentro de um bar e trocou. Deu três notas de dez reais e duas de cinco. Mas... essas duas de cinco reais estavam em petição de miséria, como se dizia antigamente. Completamente esfarrapadas, rasgadas em vários pontos, parecia dinheiro de mendigo bêbado! O motorista não esperou a reação de Seu Deolindo, arrancou o táxi e deixou o aposentado olhando atônito para as notas.

Seu Deolindo, sem sequer ter guardado as notas na sua carteira, olhou para o quiosque de onde veio o dinheiro e, sempre decidido, foi até lá:

– O senhor que deu essas notas ao motorista do táxi, né? – perguntou no seu jeito simplório.

– Sim, senhor, fui eu mesmo – disse também simplório o rapaz. – Algum problema com elas?

– Problema, problema não, mas essas duas aqui eu nem consigo meter na carteira de tão esfarrapadas, o senhor não tem duas mais novas aí? – disse Seu Deolindo.

– Me dê as notas – disse o garoto. Seu Deolindo lhe passou as notas e o rapaz simplesmente juntou os pedaços e grampeou as notas nas várias partes em que elas estavam dilaceradas, devolvendo-as ao dono.

O aposentado, boquiaberto, ficou olhando as notas, mais pesadas agora e indobráveis, quis reclamar, mas percebeu que, pela atitude do jovem, talvez até sem nenhuma maldade, nada mais conseguiria. Ainda agradeceu, virou as costas e foi embora, já com uma decisão firmemente tomada: ele trocaria aquelas notas por notas novinhas.

Tinha só 64 anos, engenheiro, aposentado, não conseguia outro emprego porque estava “velho”. Ele se sentia muito bem, mas... estava “velho”. Com 64 anos, nem podia ainda andar de graça nos transportes públicos. Assim, tomou um ônibus, dois reais e trinta centavos, e foi a uma agência do Banco do Brasil na Av. Santa Catarina, perto de sua casa. Morgou uma fila enorme (evitava, por vergonha, entrar na fila das grávidas e idosos) e, depois de uns trinta minutos, chegou sua vez:

- Moça, eu quero trocar essas duas notas velhas por duas novinhas! – falou ingenuamente à bancária. A moça pegou as notas, com profundo asco na expresão, olhou, examinou, viu os grampos por todo lado e simplesmente as devolveu, dizendo:

- O senhor só vai conseguir trocar lá no centro da cidade, na agência da Rua da Quitanda. E acho melhor o senhor tirar esses grampos da nota e colocar durex, porque assim com esses ferros eles não trocam não!

Seu Deolindo, desiludido mas decidido, saiu da fila, entrou numa papelaria, comprou uma pastinha de plástico por um real e cinqüenta centavos, pois as notas, que ele tinha levado embrulhadas num papel qualquer, não podiam ir para a carteira naquele estado. Ato contínuo, num estalo, resolveu comprar um rolo de durex, pagou mais dois reais, encostou-se num canto qualquer da papelaria e tentou tirar os grampos. Era uma operação difícil para os agora inábeis dedos de um aposentado. Comprou um tira-grampos (deve ser esse o nome daquele objeto que se mete entre as dobras do grampo ou por dentro da haste maior e arranca o grampo sem grandes estragos ao papel), mais três reais, e arrancou os ferrenhos ferrinhos. Pacientemente colou as notas, juntando os pedaços, deixando-as com certa harmonia.

Tomou outro ônibus até o metrô e comprou o bilhete-integração-ida-e-volta, seis reais e cinqüenta centavos, e lá foi resoluto para o centro da cidade. Desceu na Sé e caminhou, no meio de uma multidão alucinada, gente lhe dando esbarrões e trombadas, na direção da Rua da Quitanda. Lá estava o Banco do Brasil. Entrou, outra fila, mais espera e, finalmente, a recompensa:

- O que o senhor fez com essas notas? Como estão estragadas! Tome essa novinha, mas tome cuidado com ela, não se pode estragar notas desse jeito, senhor! – disse o almofadinha do caixa, cabelo todo cheio de gel, como um gângster de cinema.

Seu Deolindo resolveu nem responder! O que falar para um imbecil que achava que ele que tinha feito o estrago nas notas! Calado estava, calado continuou, pegou a nota novinha de dez reais, virou as costas, sorriu consigo mesmo, saiu do banco e rumou para o metrô da Sé. Vinte passos adiante, dois moleques, daqueles outrora apelidados de trombadinhas, o encostaram numa parede (um com uma faca cuja ponta estava na barriga dele!) e tascaram:

- Vovô, vai passando aí tudo que tiver, vai logo, velho, vai logo, não inventa que nóis te fura tudo, passa rápido – e dava suaves cutucões na faca (felizmente eram suaves).

Seu Deolindo, ajuizado, entregou logo o que tinha, os moleques zarparam rápido com as coisas dele, deixando-o ali, trêmulo, com os olhos esbugalhados, desnorteado por não contar com a ajuda de ninguém.

Ainda bem que os trombadinhas não tinham mexido no bolso e encontrado o bilhete do metrô, o que lhe garantiu a volta para casa. Em casa, depois de tomar, descontrolada e distraidamente, um copo de água com muito açúcar (mesmo Seu Deolindo sendo diabético), fez um balanço do prejuízo. Os trombadinhas lhe levaram trinta reais, incluindo a nota novinha que ele tinha acabado de receber no banco, um relógio de estimação, seu celular e, pasmem, seus sapatos. Somem-se a isso os quase quinze reais que já tinha gasto para remendar e transportar os farrapos das notas de cinco reais até o Banco do Brasil, o prejuízo passava fácil dos trezentos reais. Mas não foi isso que doeu! Não foi mesmo!

O que doeu, doeu lá no fundo do ego ainda vaidoso do Seu Deolindo, foi a expressão que os trombadinhas usaram ao abordá-lo: vovôôôôô!

Esse “vovô”, dito assim de chofre por moleques de uns dezessete anos, deu a exata dimensão do muito passado que tinha e do pouco futuro que lhe restava!

Leo Ricino

Novembro de 2008

Revisto em 13/11/10

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 13/11/2010
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