O caso do papel
Não suportava aqueles lugares e, por conseqüência disto, não conseguia entender o porquê das pessoas gostarem tanto de reunirem-se em grupos, cerimônias, rituais, encontros. Quaisquer ambientes que agrupassem mais de quatro pessoas a comemorar algo e olharem-se ansiosamente em busca de um fio de conversa que fosse capaz de os entrosar o repelia. Não, isso não era com ele.
Dava graças aos céus por, normalmente, nunca ser convidado para tais eventos. No entanto, desta vez ele fora. E lá estava. Mãos cruzadas em cima da pequena mesa em volta da qual estavam reunidas cerca de cinco pessoas. Vez por outra, algum dos presentes mostrava-se subitamente interessado na vida pessoal do seu vizinho imediato, forma antiga e eficaz que aquele encontrava para manter-se distraído sem encarar os convivas a sua frente:
– E a especialização, a quantas anda?...
Ao que o outro respondia com mesclas de sentenças argumentativas e descritivas na tentativa de estender aquela resposta o máximo de tempo possível:
– Bem, depois de ter perdido duas cadeiras por motivo de falta, em decorrência dos últimos acontecimentos....”.
E assim os minutos iam-se arrastando enquanto, na pequena sala, onde uma comemoração popularmente conhecida como “chá de bebê”, neste caso específico, “chá de fraldas” se desenvolvia. Paulo, assim como seus companheiros de mesa, sem garfadas, havia chegado cedo demais. Os dez minutos que tinham se passado até então pareciam ter levado três horas para fazê-lo.
Sentiu então que inconveniências de origem fisiológica o importunavam, recorreu ao dono da casa, esposo gentil que promovia o evento auxiliando sua esposa, distraindo-a com a companhia da comunidade e, ao mesmo tempo, aliviava suas próprias finanças, afinal de contas grande parte dos gastos com bebês decorre da compra das famigeradas fraudas, foi logo interpelado por Paulo:
- Será que você se incomoda se eu usar seu banheiro?
Ao que o sorridente anfitrião responde:
- Claro que não Paulo!!! Que idéia! Mas você vai ter que usar o do meu quarto, pois ainda hoje a encanação do banheiro de visitas resolveu entrar em greve. Não repare a bagunça. E, virando-se, faz sinal para que este o siga.
E lá se foram os dois entrando em fila indiana corredor adentro, quarto adentro, banheiro adentro. Fila indiana, esse é o mal da maioria dos apartamentos, imóveis popularmente conhecidos como “apertamentos”.
Paulo, à porta do pequeno banheiro agradece e, em seguida fecha a porta do banheiro. Enquanto põe fim às suas necessidades fisiológicas, começa a reparar no pequeno cômodo em que se encontra. - Muito jeitoso! Pensa. Box fumê, cerâmica preta, chuveiro elétrico, tudo bem organizado e... - Seu pensamento é interrompido por uma súbita constatação – Não há lixeiro no banheiro!
- Eu não acredito! Todo esse requinte e luxo e...pelo amor de Deus...isso é uma suíte!!!!!!!! E não há um lixeiro neste banheiro!!! Puta merda! E põe merda nisso! E agora?! O que é que eu vou fazer com esse papel sujo?!!
Os estudiosos da mente humana costumam afirmar que a neurose ocorre quando há uma reação exagerada do sistema nervoso a dada experiência vivida. Sendo esta reação uma maneira de ser da pessoa e não um estado psicológico.
- Se deixá-lo aqui é claro que eles saberão que fui eu. Era só o que me faltava, além de fama de neurótico, ser conhecido como aquele que só faz merda!!!
Muitos minutos se passaram enquanto Paulo, desesperadamente, refletia sobre o que fazer com aquele papel. Jogar ou não jogar o papel sujo no chão do banheiro – eis a questão!
Ainda suava com a simples idéia de jogar o papel no chão, quando seu amigo, nosso educadíssimo anfitrião gritou lá de fora:
- Está tudo bem Paulo? Você está precisando de alguma coisa?
Ao que Paulo de um salto responde:
- Não. Está tudo bem. Eu estou bem. Saio em um minuto.
Não vou ser o assunto da segunda-feira! Ah, mas não vou mesmo! Sem pensar nem mais um segundo, enfiou o papel sujo, meticulosamente dobrado dentro do bolso de trás da calça, onde estava a carteira, lavou as mãos e saiu.
De volta à mesa, o assunto ainda era a especialização do conviva à direita. Entretanto, percebeu que já havia petiscos para saborearem, alguns doces e uma salada de frutas para cada lugar posto. Dois convidados, que haviam notado sua ausência, comentaram:
- Nossa como você demorou!
- A fila do banheiro estava grande?
- Sabe como é, o pessoal exagera nos docinhos nessas festas – respondeu Paulo rapidamente, virando-se para seu companheiro que realizava os últimos esforços para prolongar o assunto da especialização.
- Salada, docinhos, salgados e, finalmente o bolo. Duas horas haviam se passado e Paulo preparava-se para as despedidas quando percebeu que seu chefe encaminhava-se até a sua mesa. Endireitou a postura preparando-se para cumprimentá-lo – há meses tentava mostrar-lhe um novo projeto e nunca tinha oportunidade de falar-lhe o suficiente, rodeado que o chefe sempre estava dos demais empregados. Sabia que desta vez não seria diferente, mas não lhe custava endireitar-se.
- Boa tarde pessoal! Saudou calorosamente o superior.
Cumprimento ao qual todos responderam prontamente
- Paulo você estava querendo me falar sobre algo não era? Ainda está com aquele cartão com o endereço do site no qual está descrito seu projeto?
- Sim chefe! Estou com ele bem aqui em minha carteira. Tão entusiasmado estava de ver que o chefe não apenas lembrara-se do seu nome como também do seu projeto, que Paulo esquecera-se completamente do outro objeto que havia guardado em seu bolso duas horas antes.
Sem perder tempo, tirou a carteira do bolso e a abriu sem perceber que alguma coisa havia se desgrudado desta e repousava, abrindo-se lentamente, sobre a mesa onde ainda se podiam ver pratos de salgados e alguns copos com salada.
- Enquanto ainda olhava para o chefe, Paulo percebeu que todos haviam desviado seus olhares da imponente autoridade e os dirigiam agora para um pequeno objeto branco com manchas marrons que repousava sobre a mesa e emanava um cheiro efetivamente desagradável.
- Por um breve momento, pensou em virar a mesa sobre todos aqueles hipócritas sentados diante dele e xingá-los com toda a espécie de palavrões que já os havia dirigido em seus pensamentos durante todos aqueles anos em que trabalharam juntos. Mas, em um lampejo de razão, e com os olhos obtusamente vazios, engoliu em seco, apanhou o papel higiênico sujo, agora totalmente desdobrado sobre a mesa, dobrou, guadou-o no mesmo bolso de onde o havia tirado e partiu sem olhar para trás.