O som da estagnação

De uns dias para cá Melindra se tornará mais discreta e calada; foi de repente essa transmutação em seu humor. Os lábios abertos dos antigos sorrisos meigos e singelos, quase pueris, davam lugar aos olhares assustados e inquisidores. Seu lindo corpo de textura macia e que exibia formas arredondadas que vibravam ao caminhar por onde passasse – atraindo a atenção das invejosas e dos homens em êxtase –, agora transmutou-se numa carcaça fétida, esquálida, duma magreza anoréxica sem descrição. Suas palavras corriqueiras se limitavam em dois sons quase indistintos: “foice (ou force, ou foi-se)”; ninguém conseguia compreender aquelas palavras ocas que saiam secas. O tempo era apenas um pulsar nas veias, enquanto que nenhuma mudança se manifestava em suas posturas catatônicas e deprimentes.

Não se sabe decerto a causa de tamanha opressão espiritual – como muitos definem: melancolia mórbida – naquela garota tão encantadora e vívida; apelar a explicações metafísicas ou mesmo supersticiosas não apraz os parentes e amigos que a rodeiam. O jeito é recorrer a um analista perspicaz capaz de solucionar a Dor incógnita presente em seu âmago dominado por um desespero psicológico.

Melindra não cessava de vocalizar aqueles sons indistintos por quase todo o dia, isso por vezes irritava quem iria visitá-la nos dias quentes do verão; já em meados do inverno, a sua sensibilidade se modificava ao ponto de, ao invés daquelas palavras vazias expressas mecanicamente, ela simplesmente caía numa total rigidez corporal. Era impressionante aquela cena quase interpretada: os olhos estáticos fitando a interioridade sem emoção, neutra; a respiração lenta e ordenada em suspiros leves como a brisa que nos apazigua; os cabelos se desalinhavam e desciam sujos pela testa suada e lívida; as roupas não eram trocadas, pois quem tentava tocá-la naqueles momentos de pura decadência ontológica, era repelido não por seus braços inânimes, e sim por uma estranha energia elétrica que vibrava ocasionando lesões nas mãos de terceiros. O cataclismo mental era visível e de causar dó, não era fácil observá-la naquela circunstância sem poder fazer nada de efetivo para ajudá-la.

Já era tarde quando perceberam a doença; era silenciosa e dissimulada. Impossível notar qualquer modificação de humor numa pessoa com sintomas patentes de depressão, já que muitas vezes eles são confundidos como pertencentes à própria natureza do desenvolvimento hormonal (ou no caso dela, pertencente ao ciclo menstrual). É mais corriqueiro notar coisas irrelevantes do que as realmente necessárias ao bem-estar.

Em todo esse aperreio familiar a figura de Melindra era um contraste: enquanto que os seus queridos se preocupavam em demasia, ela simplesmente estava distante de qualquer auxílio ou amparo. Ironicamente quem mais sofre é justamente aquele que observa a decadência do outro. E nessa ânsia de querer fazer o bem ao próximo, muitas vezes negamos aceitar que é impossível fazer algo que o torne tão integro quanto antes.

Aos poucos a doença avança! De uma simples indisposição até o mais alto grau de esquizofrenia, ela toma conta da alma como um demônio familiar. E não se pode negar que qualquer pormenor influencia o ânimo da pessoa; por vezes as mais simplórias circunstâncias estimulam reações insuspeitas, já que em tudo há determinações que nos escapam compreender.

No caso de Melindra as circunstâncias não eram visíveis, mas suas reações negativas em relação às circunstâncias ficavam claras dia após dia. Falava com dificuldades as coisas desordenadas que surgiam em meio às tempestades de sua mente, e os outros fingiam entendê-la para não contrariá-la. Sabe-se que não é recomendável refutar as opiniões dum indivíduo em perturbação, pois você corre o perigo de se visto com uma pessoa que está desafiando-o. Aos poucos as palavras foram desgastando-se pelo desuso ou mesmo pela vergonha que sentia ao falar sobre assuntos que só ela parecia gostar.

Muitas vezes ela encostava-se à porta de seu quarto para ouvir o que seus pais falavam sobre seu atual estado, e sempre ouvia surdamente “Foi-se a época que ela era tão... “Ah senhor! Foi-se embora a beleza meiga e Tu deixaste lhe toda a juventude incompleta?”. Talvez aí esta o motivo dela sempre reverberar aqueles sons confusos e vagos que tanto se fala, mas certamente que esse fator já é conseqüência do que ocorreu em sua consciência e não o que levou-a a alienar-se do mundo.

Foram diagnosticados diversos distúrbios em sua personalidade, todos condicionados pela afetividade limitada que era esperada por ela, já que deixava claro que gostaria de experimentar mais das paixões e dos vícios emotivos. Alguns medicamentos foram prescritos e, às vezes, altas dosagens de sedativos eram aplicadas porque muitos desses remédios causavam convulsões e calafrios na pobre moça. Mas não adiantou toda essa busca na biologia, pois Melindra continuava sem expressar emoções e cada vez que tomava os comprimidos de estrogênios, não tardava a cair na mais profunda taciturnidade catatônica; nenhuma estátua parecia tão perfeita como ela em seu estado de estagnação. Era como se o mundo exterior fosse um grande vazio incolor e sem movimento, como se o tempo e o espaço fossem criações absurdas da própria individualidade guiada pelos ponteiros da experiência. Irônico era que ate mesmo o seu cachorro evitava estar perto dela nesses momentos merencórios de pura absorção na neutralidade absoluta.

Triste é saber que há alguém lá dentro querendo romper os grilhões prateados, uma vida que afunda num abismo sem chão e que grita com todas as forças seu apelo, mas sua voz se perde nas penumbras da inconsciência e não sai dos lábios ressecados. Ver que alguém está ali, rígido e sem vida, não por querer e sim por uma força negra maior que as nossas armas, nos revolta, nos deprimem e serve como um espelho que revela a inferioridade da espécie humana. Olhar nos olhos escuros e tristes, sem brilhos duma jovem e reconhecer que uma alma se faz apenas quando se está ciente de si mesmo nas relações com o outro é uma dura verdade irrefutável.

O pior é saber que mesmo que essa alma não exista para mim, ela existe para si mesma e quer se resgatada lá das sombras do seu eu interior para finalmente vir a ser notada, preenchida com vida, com ternura, embora em sua aparente postura, ela não demonstre estar preocupada com nenhuma possibilidade.

Desse fado aflitivo, Melindra ainda hoje sofre quieta (quieta aos meus juízos equivocados), com as mãos frias escondendo as chagas duma vontade não realizada. As vozes clamam seu nome, tentando resgatá-la deste báratro introspectivo sem um rumo definido, invocando anjos e espíritos perfeitos para guiá-la de volta; mas pode ser que ao invés de fazê-la retornar ao mundo fenomênico das ilusões, tragam um ser mais doente, mais mundano e que queira apenas as luxúrias e as gratificações por ostentar uma figura aceitável. Por mais forte que sejam as cerimônias e os apelos clamorosos, no ar, apenas o som indistinto e repetitivo produzido pela voz de Melindra percorre com ímpeto e vigor os ouvidos e os corações oprimidos daqueles que quase desistiram dela:

“Foi-se...”

Marcell Diniz
Enviado por Marcell Diniz em 28/08/2010
Reeditado em 01/09/2010
Código do texto: T2465074
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