O Vaso
Era rosa o vaso sanitário. Simplesmente Rosa, acompanhando a pia já desgastada pelo tempo com suas manchas de creme dental. Quantos dentes já teriam sido escovados ali naquele banheiro? Quantos rostos foram refletidos no espelho com suas bocas espumando ao vai e vem de escovas das mais variadas formas e cores... Cabelos despenteados e olhos com restos de noite. Nus ou com seus pijamas interessantes. Todos certamente olharam interrogativos para o vaso sanitário e sua cor inusitada. Maioria masculina, suponho. Caramba! Era Rosa... nome de flor: Maria Rosa. O que levaria alguém a pintar um vaso sanitário de... Rosa... e outro alguém a comprá-lo e, ainda mais, assentá-lo num banheiro de um hotel...? Hotel barato. Cortinas toscas e lençóis de pouco algodão cheirando a amaciante. Um ventilador de teto com seu movimento circular e seu barulho de helicóptero sacaneando o sono que poderia chegar a qualquer instante, não fosse a conta a pagar, não fosse o abandono da mulher amada, não fosse a pílula abortiva ingerida, não fosse a fuga, não fosse a tristeza, não fosse a espera ansiosa pelo crime do amanha ou a tensão pelo de ontem... Não fosse a incerteza, o conto, o poema... Não fosse a prostituta fingindo gozo no quarto ao lado, com seus gritos decorados. Um script de “como fazer um otário se sentir homem e pagar caro por isso”. Não fosse o ódio. Não fosse a paixão. Não fosse o chat da internet e seu universo virtual. Um passeio para o mundo tosco da fuga de si mesmo. Não fosse um vaso sanitário Rosa e uma lembrança triste... O passado... O ontem... a calça jeans preferida que já não nos cabe mais.... Um adeus na beira do cais, para sempre guardado na memória. Onde se guardou sorrisos, também coube um vaso de lágrimas... Um hotel e suas historias que não serão jamais contadas... Um guarda roupas, com suas portas tortas e seu espelho quebrado. Nunca foi de bom gosto e agora ainda me parece mais feio, ao passar dos anos que nem suponho quantos já foram. É o tempo, meu camarada, agindo no homem e em seus móveis e utensílios.... Uma bíblia no criado mudo, com as páginas do apocalipse arrancadas (alguém certamente não gostou do final da historia). Naquele dia chovia muito e os sapatos sujos de lama denunciavam o tempo e o seu estado de ânimo. “Hrrã!” Debochou de si mesmo. Teve fome, mas não teve coragem de sair. O hotel não servia muita coisa, ainda mais em altas horas. Não havia nenhum “delivery”. Não havia saída. Lembrou-se de quando era criança e dos sonhos que tinha. Lembrou sorrindo que já realizara muitos deles e que motivo de sobra havia para estar feliz. Mas que merda! Estava ali, sozinho num quarto de um hotel barato com um vaso sanitário rosa. “Hrrã!”, debochou novamente. Ver TV era uma ( a única ) opção. Acionou o controle remoto e viu que não funcionava. “A TV ou o controle?”, pensou... Que merda! Levantou até o aparelho e o acionou manualmente. Ligou. Poderia ser as pilhas, já também sucumbidas à ação do tempo. Abriu o.control Retirou-as e colocou-as novamente. Nada. Telefonar para a recepção era o próximo passo. Não havia telefone no quarto. “Levantar e descer as escadas??? Não”. Não havia condições. “Celular! Onde está o celular?” Achou. “Qual o numero do hotel?” não sabia. Deveria haver algum cartão, bloco de anotações, qualquer coisa onde constasse o número. Nada. Vestiu roupa. Calçou sapatos sujos de lama. Desceu escadas. Na recepção relatou o seu problema. Nada ouviu. Apenas recebeu um aparelho similar. No quarto... na cama... já sem roupas viu que também não funcionava. QUE MERDA! Todos ouviram a indignação ecoando pelos corredores. Nada a fazer. Foi ao banheiro e não teve coragem de usar o vaso cor de rosa. Rosinha. Maria Rosa.... Mijou no ralo embaixo do chuveiro. Na cama tentava dormir, afinal pagara para isso. Dinheiro mau gasto. Era apenas abrigo, nada mais. Pensando bem, melhor do que estar na rua. Chovia muito. Fazia frio. Dinheiro bem gasto. Bendito maldito dinheiro. E sempre assim, não ?? Uma coisa e outra. O homem e suas encruzilhadas. A vida e a morte. O emprego e o desemprego. O apego, o cansaço, as armadilhas, os sonhos, o perto e o distante, o certo e o errado. Mas quem foi que disse que viver é fácil? Ao menos não havia moscas ou mosquitos... seria o caos total.
Yuri J.Sedrick