O MISONEÍSTA

I

O ruído denso e monótono preenchia todos os cômodos da casa, havia já algum tempo que o braço da agulha chegara a borda do LP e o aparelho de som 3 em 1 estéreo vibrava potente, bem instalado numa estante de madeira maciça repleta de discos de vinil, fitas-cassetes, livros, fitas de vídeo e revistas, numa desorganização proposital e subjetiva.

A poucos metros dali, bem acomodado numa poltrona colonial, um jovem, com a capa de um disco do Pink Floyd escorregando das mãos, adormecia ao entardecer do seu primeiro dia de férias, indiferente às músicas do lado B e à qualquer outra coisa do mundo ou da vida.

Como ele, antecipadamente, planejara, os primeiros quinze dias seriam sábados ensolarados; o restante; domingos chuvosos, daqueles em que se desfruta do aconchego do lar e os hobbies preenchem todo o tempo, no ritmo próprio do mundo das idéias, quando a música e a literatura embalam a alma, afastando a tirania dos relógios, então, impotentes para delimitar os dias, as horas e os minutos.

Apesar do entardecer do primeiro sábado ensolarado, propício a diversões num lugar legal, ele simplesmente desacelerava, longe do escritório estressante onde trabalhava, agora, no ócio displicente em sua sala de estar, que mais se parecia com um antiquário de móveis clássicos e nostálgicos, de épocas bucólicas, mais felizes.

Próximos à estante, figuravam um bar de canto com alguns vinhos, um rack com uma Televisão preto e branco enorme, um telefone daqueles só vistos nos filmes e uma velha escrivaninha sob a qual se dispunha uma pequena máquina de escrever Olivetti lettera 22, num ambiente mal iluminado por um lustre de estilo retrô.

Aquela luz amarelada atribuía efeitos psicodélicos aos dois óleos sobre tela que decoravam as paredes da sala e apenas com certa dificuldade se podiam ler as últimas linhas mal datilografas, que em versos livres diziam:

“O que são esses dias,

Quando o chique é clichê

Brega é ser moderno

E tudo é dinheiro,

Mais do mesmo, modismo

E lugar comum?”

Provavelmente, essa página se perderá no meio da bagunça de tantos outros papéis espalhados por toda a parte e, com certeza, será mais um dos muitos projetos iniciados e sem perspectiva de conclusão, numa atitude típica dos aquarianos.

II

Despertou num sobressalto, preocupado com as horas. Sorriu ao lembrar que estivera sonhando que voava, impressão lúcida como se real fosse, com a nostalgia de uma sensação de liberdade empolgando-lhe o coração.

Estava de férias. Percebeu, então, que pouco importava o relógio e decidiu fazer nada e dar sinal de ocupado. Desejou consumir algo supérfluo e calórico.

Na cozinha, localizou a porcelana, a chaleira e o bule. Mas onde estava o chá verde?

Para ele, o chá não era uma infusão feita encharcando folhas secas em água quente por alguns minutos, não apenas isso. Era algo muito especial. Já a alguns anos, ficara sabendo das propriedades medicinais do chá verde e se interessou pelas promessas de emagrecimento, prevenção das doenças do coração e combate aos radicais livres. Além disso, a bebida, sentia dessa forma, preparava o seu espírito para a sua “Hinterlândia”, quando se metia consigo mesmo, com a sua subjetividade. Assim, sempre tomava chá no final da tarde, na varanda, precisamente no momento da sua happy hour, quando se vendia aos livros, aos discos, e às suas idéias.

Colocou, antes de tudo, a água fervente dentro do Bule, para aquecê-lo, esvaziando-o em seguida. Depois Adicionou uma quantidade generosa das folhas de chá, despejou água quente por cima e o reservou tampado, aguardando a infusão.

Após cinco minutos, boa música soava pela casa, o sol poente entrava pela varanda e o aroma suave do chá destacava-se, delicioso como a visão da grande fatia de bolo de chocolate com nozes, que acompanhava os apetrechos do aparelho de chá, bem arrumados sobre uma grande bandeija de prata.

Saboreava, vagarosamente, a bebida, quente e relaxante, as guloseimas deliciosas, sempre imerso em mil pensamentos dispersos. Resolveu, então, dar uma lida nas últimas linhas mal datilografadas, cheias de letras rebatidas e rasuradas, sem o menor compromisso de estética ou normas de apresentação textual.

Sem maiores transcendências, após ler as ideias desconexas e simples, emendou, no ritmo lento de sua máquina manual: “Liberdade é não ter pressa, ainda que o coração dispare, sempre desafiando, toda nova é uma reconquista, toda vida.”

Enquanto relia suas últimas linhas e pensava desmotivado diante do contraste daquela poesia com a experiência prática da realidade viva do dia-a-dia, se assustou, num sobressalto, com o seu celular tocando.

E, antes que pudesse ter um insight, uma inspiração qualquer, percebeu que o mundo clamava já o seu empenho, a sua atenção, desconectando-o de sua hinterlândia, para ser, parecer, continuar e tornar-se apenas mais um, petrificado no cimento da rotina, coisificado nas relações interpessoais egoísticas que distanciam as pessoas, bem como vendido aos valores do consumismo, que sobrepujam a liberdade e a originalidade em favor do imediatismo da vida e da descrença em ideais nobres, norteadores de uma vida plena e feliz.

- Alô. Oi, linda! Não, não, não me esqueci não... Vou sim. Que nada, vale night, só o ouro!

G Matos
Enviado por G Matos em 08/08/2010
Reeditado em 21/09/2011
Código do texto: T2425736
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